O controle sobre a violência da PM é uma piada. E o MP é cúmplice.

Foto: André Coelho/Getty Images

O DOMINGO, 16 de março de 2014, amanheceu como muitos outros dias no Rio de Janeiro: com operação policial. Foi assim no Morro da Congonha, em Madureira, no subúrbio do Rio. Por volta de 9h, uma viatura do 9º BPM, de Rocha Miranda, desceu a Estrada Intendente Magalhães com o porta-malas aberto. Ali conhecemos, da pior forma, Cláudia Silva Ferreira que, vítima de uma bala perdida durante operação, foi arrastada pelas ruas do bairro, presa pela roupa ao veículo da PM.

Era fim da linha para ela, mas não para o capitão Rodrigo Medeiros Boaventura, que responde pela morte de Cláudia. Seis anos após o crime, Boaventura foi considerado pela PMERJ “apto” para julgar seus pares, igualmente acusados de crimes militares na Justiça.

Isso mesmo que você leu acima. A PMERJ colocou o nome do capitão em uma lista com nomes de oficiais, encaminhada à Auditoria Militar do Tribunal de Justiça do Rio para fazer parte do Conselho Especial de Justiça, que tem a responsabilidade de julgar militares no estado.

A Auditoria não tem uma regra que impeça a indicação de servidores que respondem a processos como Boaventura. A PM deveria fazer esse filtro, não faz, e a Auditoria não acha ruim. Vida que segue.

Seis policiais são acusados de matar Cláudia. Dois policiais se aposentaram, e quatro – entre eles Boaventura – seguem trabalhando. Nenhum foi julgado ou punido por matar Cláudia e arrastar seu corpo pelas ruas de Madureira. Os PMs Adir Serrano Machado e Rodney Miguel Archanjo, envolvidos no crime, responderam, entre 2000 e 2014, por 62 “autos de resistência”

O fim da vida de Cláudia cruza, seis anos depois, com o fim da vida de João Pedro, morto em operação policial dentro de casa no Morro do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio. Dois dos três policiais investigados pela morte do adolescente já responderam por alterar a cena de crime durante uma outra operação, em 2012. E o que aconteceu agora? A mesma coisa, a cena foi alterada. João Pedro foi retirado do local após ser baleado,  assim como ocorreu com Cláudia, igualmente “socorrida”.

Preste atenção nas aberrações da investigação do assassinato de João Pedro: 1) um policial investigado pela morte do menino ficou com material apreendido na operação; 2) policiais recolheram cartuchos antes da perícia chegar e alteraram versões sobre os disparos; 3) um dos policiais investigados só entregou o fuzil para perícia uma semana depois; 4) e para coroar o processo: o delegado, que estava na operação e que investigava as circunstâncias do crime, foi acusado por uma testemunha de alterar depoimento – ele foi afastado do caso.

Veja outro caso. Os policiais acusados do homicídio de Maria Eduarda, morta dentro da escola durante uma operação policial em Acari, zona norte do Rio, trabalham no centro de seleção de praças da PM. Fábio de Barros Dias e David Gomes Centeno respondem ainda por outras 37 mortes durante operações. Eles são os responsáveis por elaborar “pesquisas sociais”, que definem quem tem ou não a ficha limpa para entrar na PM.

Se você leu até aqui e sua cabeça martelou que “tem que desmilitarizar a PM”, dê um passinho atrás – e prometo que depois escrevo só sobre isso. Cláudia foi morta numa operação da PM; e João, em uma ação conjunta da PF e Polícia Civil.

Como é possível que policiais com tais históricos e condutas continuem nas ruas? Essa é a primeira pergunta que surge quando os casos são revelados. E não há uma resposta simples.

Sistema viciado

Conversei com o ex-corregedor da PMERJ, o hoje coronel reformado Wanderby de Medeiros, para tentar entender por que policiais envolvidos em crimes não são julgados ou punidos. A corregedoria é responsável por abrir procedimentos internos que se subdividem em inquérito policial militar, sindicância e averiguação. O objetivo é corrigir más condutas de policiais.

“Investigações conduzidas por policiais acusados de crimes contra a vida e mesmo a manutenção de seu emprego no ‘combate’ são só efeitos muito nefastos de uma causa bem maior”, ele me disse. Para Medeiros, essas situações são um “efeito da vulgarização da vida humana, inclusive dos próprios policiais, refletida, dentre outros fatores, na ausência de reais e efetivas políticas públicas voltadas à priorização de sua proteção”.

Some-se a isso a escassez de recursos em toda a polícia e a falta de autonomia e suporte para trabalhar corrigindo policiais que abusam da violência ou cometem crimes.

Veja outro episódio que ilustra a situação a dificuldade de apurar os crimes e punir policiais. A investigação do Ministério Público do Rio revelou que o ex-PM Fabrício Queiroz, envolvido no inquérito de corrupção com Flávio Bolsonaro, disse ter contato com “a cúpula de cima” em mensagem a Heyder Cardozo, policial militar que pedia ajuda para Edson dos Santos e Luiz Felipe Medeiros, policiais condenados no caso Amarildo. Você acredita que os policiais que trabalham na corregedoria têm autonomia e segurança para fazer seu trabalho nesse contexto em que pressões e constrangimentos devem ser comuns?

Pois é.

Corrupção, corporativismo, compadrios, “contatinhos”. Quando o sistema de justiça se baseia nesses critérios, o resultado não pode ser diferente do que vemos.

Uma análise dos custos da violência policial no Rio de Janeiro, feito pela organização internacional HRW, mostrou que um quinto de todos os homicídios registrados na capital fluminense em 2015 foi cometido por policiais. Três quartos dos mortos eram negros. Sabe quantos desses homicídios foi alvo de investigação pelo Ministério Público carioca?

Na época, o MP-RJ disse aos pesquisadores que apresentou denúncia de apenas quatro – ou 0,1% – dos 3.441 casos de homicídios cometidos pela polícia que foram registrados entre 2010 e 2015. Repetindo: 0,1%.

E as mortes por policiais não arrefecem. Pelo contrário: em 2020, o Rio teve o maior número de mortes por policiais em 22 anos, um recorde. Esse aumento ocorreu em um contexto de queda de homicídios em geral, que obteve o segundo menor índice já registrado pelo ISP.

Um outro levantamento, realizado pelo pesquisador de segurança pública Pablo Nunes, com base em LAIs, revelou que o MP leva, em média, cinco anos para dar uma resposta sobre os casos de mortes cometidas por policiais. Para os casos de arquivamento, a média chega a 6,7 anos e, para as denúncias, 2,7 anos. Dos mais de 740 homicídios que ocorreram entre janeiro a maio, apenas um teve resposta do MP, que ajuizou denúncia.

Para Nunes, a omissão do MP na investigação desses assassinatos contribui para que o cenário permaneça como está – e piore. “A não investigação por parte do MP dá aos policiais a certeza de que eles terão quase que um perdão pelo crime cometido. A falta de investigação e a certeza da impunidade explicam os números absurdos que registramos no Rio todos os anos”, me disse Nunes.

Há casos de legítima defesa? Não tenho dúvidas. Mas há Cláudias, Marias Eduardas e Joãos Pedros. A impunidade não está só na conta das polícias.

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