Uma meta baixada em 2011 para concluir os inquéritos de homicídios abertos até 2007 em todo o país resultou num arquivamento em massa dessas investigações. No Estado do Rio de Janeiro, 96% dos inquéritos que foram encerrados foram para os arquivos da Justiça, sem que as autoridades descobrissem quem foram os autores desses homicídios. E os suspeitos investigados ficaram, portanto, sem qualquer punição. Veja os dados completos por estado.
Um 2011, a Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp), formada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e pelo Ministério da Justiça, baixou a Meta 2. O dispositivo previa “concluir os inquéritos policiais (IPs) de crimes de homicídios instaurados até o dia 31 de dezembro de 2007”. Para acompanhar a execução da Meta 2, foi criada no site do CNMP uma ferramenta chamada “inqueritômetro”, que monitora a quantidade de inquéritos que resultaram em denúncias à Justiça, inquéritos arquivados por falta de provas e de desclassificações (quando se conclui que o crime investigado, que inicialmente foi tratado como homicídio, na verdade era outro crime).
Quando a Meta 2 entrou em vigor, havia 47.177 inquéritos de homicídios abertos até 2007 em andamento. Até agora, 30.060 investigações foram concluídas, restando ainda 17.117 inquéritos em andamento. Entre os concluídos, 96% foram arquivados. E somente 4% resultaram em denúncias à Justiça.
“Essa estatística é um escândalo. É o reflexo, a afirmação e certidão da impunidade que ocorre no país, especialmente no Rio de Janeiro. É inconcebível que 96% dos homicídios que ocorram, apenas 4 cheguem no judiciário. E digo mais: quatro chegam para iniciar um processo. Não significa que, de 100, esses 4 que chegaram são 4 condenações. São 4 processos que podem gerar impronúncias, desclassificações, absolvições e até julgamento pelo tribunal de júri e até uma eventual condenação. É uma via crúcis, é uma dificuldade, de levar alguém as barras do Tribunal do Júri. Isso é lamentável. É um atestado de falência completa da investigação, falência do Estado repressivo. Em todo Estado, em toda civilização, é necessária a repressão”, afirmou o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Fábio Uchôa, que durante 14 anos foi juiz de uma das varas que julgam homicídios na cidade do Rio.
Não é só no Rio que a quantidade de inquéritos arquivados é alarmante. Na Paraíba, 87% das investigações concluídas tiveram o mesmo destino. Em seguida, vêm Espírito Santo e Rondônia, com 86%. Bahia e Sergipe arquivaram 82% das investigações. O Rio Grande do Sul, 80%. São Paulo e Santa Catarina, 75%.
Em apenas cinco Estados do país, os inquéritos arquivados correspondem a menos da metade das investigações que foram encerradas: Amapá (45% de arquivamentos), Piauí (44%), Acre (43%), Roraima (30%) e Pará (20%).
“Não é só uma questão da polícia ter mais ou menos recursos pra esclarecer homicídios. Em Estados que claramente têm menos recursos que o Rio de Janeiro, a quantidade de denúncias foi maior. Temos que levar em conta que partiu-se de um estoque inicial muito alto, que já refletia um descaso com a investigação desse tipo de crime”, avaliou a socióloga Julita Lemgruber, do Centro de Estudos em Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Cândido Mendes. “Temos que pensar qual é a importância do crime de homicídio no Brasil. Há um descaso histórico em relação a esse crime. Porque as vítimas em geral são negros, pobres, e moram ou nas favelas dos grandes centros urbanos ou nas periferias das cidades. São essas as vítimas dessa tragédia que é o alto índice de homicídios no Brasil. O Brasil teve nos últimos 4 anos mais homicídios que a Síria, um país em guerra, com bombardeios russos. Mas o Brasil consegue ter um número maior de mortes violentas”.
Um dos inquéritos de homicídios que foram arquivados no Rio é o que investigava a morte de Carlos Henrique Reis da Silva, de 11 anos. O menino foi morto ao ser atingido por um tiro na cabeça, durante um tiroteio entre traficantes e policiais militares na Favela da Maré, zona Norte do Rio, na noite de 3 de julho de 2005. Ele, o pai, Carlos Alberto, e outras quatro pessoas estavam dentro de um carro que ficou em meio ao fogo cruzado. A mesma bala que matou o garoto atingiu a cabeça de Carlos Alberto, que sobreviveu. A pedido do Ministério Público, a Justiça arquivou o caso em 2011.
“A gente estava vindo de Madureira. E quando a gente entrou na Maré, o blindado confundiu a gente com “os meninos” e atirou. Esse tiro pegou na cabeça do meu filho e depois, na minha. Peguei ele, abri a porta do carro. Não tinha ninguém. Olhava para um lado, olhava para o outro, ninguém aparecia. Carreguei meu filho por uns 100 metros ainda e caí. Daí não me lembro de mais nada”, conta Carlos Alberto.
“Meu filho morreu como um traficante. No chão, com um tiro na cabeça. E nada ficou resolvido. Porque como foi arquivado, ficou em vão. O que eu fico indignada é que foi arquivado. Porque quem fez mesmo, está por aí pra fazer com os outros”, desabafa a mãe de Carlos Henrique, Renata Ribeiro Reis.
João Tancredo, advogado da família do menino critica o trabalho da polícia. “O fundamental é a falta de uma investigação científica. Ficamos muito vinculados à prova testemunhal. E essa prova às vezes desaparece até por segurança dessa própria testemunha. Isso vai gerando impunidade. Se você não apura, não sabe quem cometeu o crime. Em muitos dos casos, crimes praticados por pobres são apurados com rigor. Crimes praticados contra pobres, não tem nenhuma apuração e dá esse número enorme de arquivamentos”, afirmou o advogado.
Para tentar melhorar a qualidade das investigações de homicídios, em 2010 a Polícia Civil do Rio criou a Divisão de Homicídios (DH). “Foi criado um protocolo pré-estabelecido pra que a gente pudesse ir até o local de crime e trazer a maior quantidade de informações. Nesse local de crime, temos um delegado de polícia, a perícia completa e a visão dos agentes. Isso faz com que a gente tenha maior quantidade de prova e cheguemos a ter um grau de elucidação, nos últimos seis anos, em torno de 25%. É fato que ainda é muito pouco. Mas encontramos um caminho, que é o caminho da técnica de dar uma resposta imediata aos crimes de homicídio”, explica o delegado Rivaldo Barbosa, diretor da DH.
Responsável pelo inqueritômetro, o conselheiro Valter Shuenquener, do CNMP, critica a incompetência das autoridades brasileiras nas investigações de homicídios. “O Brasil está numa posição muito ruim em matéria de elucidação de homicídios. Já havia uma suspeita de que isso ocorreria. Mas é triste saber que aproximadamente apenas 5% dos homicídios ocorridos no Brasil geram uma denúncia. Não estou falando de condenação, mas apenas do ato inicial do Ministério Público para que o tema seja processado na Justiça. Portanto, é muito triste, principalmente se compararmos com países da Europa. Na Inglaterra, essa regra é inversa: apenas 5% dos homicídios não são elucidados. E nos Estados Unidos, 70% desses crimes são elucidados”.
Na segunda-feira, a GloboNews pediu que o Ministério Público do Rio comentasse o teor da reportagem. A assessoria do MP RJ informou que precisava de mais tempo para se pronunciar.
A repórter Gabriela Ferreira, conversou sobre o assunto no Rio de Janeiro com Atila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional. Assista à entrevista em vídeo.