Segundo estudo, feito em 2016, a maioria dos entrevistados acha que o programa de ocupação ‘não faz diferença’
RIO – Quando as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) começaram a ser implantadas, em 2008, elas foram anunciadas como uma medida libertadora e positiva numa cidade partida, mas cuja a rotina de violência se fazia presente tanto nas comunidades quanto no asfalto. Redução dos índices de criminalidade, fim do controle do tráfico e restabelecimento do direito de ir e vir em áreas dominadas por facções, implementação de projetos sociais: tudo isso estava no escopo do programa. Durante quatro anos, o Rio assistiu a uma queda significativa nos números relacionados à segurança pública. A partir de 2012, no entanto, o cenário mudou e o recrudescimento da violência sinalizou o começo do fim das UPPs. Passados quase dez anos da concepção do programa, a constatação é de que ele não mudou a vida dos moradores das comunidades onde foi aplicado.
Uma pesquisa sobre os aspectos positivos e negativos das UPPs feita pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESec), da Universidade Cândido Mendes, com 2.479 pessoas que vivem em 37 das 38 regiões com Unidades de Polícia Pacificadoras no Rio (a Baixada Fluminense ficou de fora), mostra que a percepção dos impactos gerados pelo programa é baixa: a maioria dos entrevistados – numa variação percentual entre 55% e 68%, dependendo da comunidade e do perfil do morador (idade, escolaridade etc.) – afirmou que a presença da UPP “não faz diferença”. O levantamento com 56 perguntas, aplicadas nos domicílios dos entrevistados, foi realizado entre os dias 8 de agosto e 25 de outubro de 2016. Ou seja: incluiu os bons ventos dos Jogos Olímpicos, mas isso não foi suficiente para respaldar aspectos positivos de um projeto já em crise.
Corta para agosto de 2017. X. mora no Jacarezinho, comunidade da Zona Norte do Rio que tem uma UPP e há 12 dias é cenário de operações policiais com tiroteios que duram horas e confinam os moradores em suas residências. O saldo dos confrontos iniciados após a morte do policial civil Bruno Guimarães Bühler, de 36 anos, impressiona: cinco mortos. A vontade da moradora é abandonar sua casa e deixar tudo para trás por medo de balas perdidas:
— É tiro todos os dias. No início, pensamos que a UPP fosse trazer benefícios para a comunidade. Mas, até agora, só tem um projeto social de música, que nem tem tido aula direito, por causa dos tiroteios. Só vemos o lado ruim da polícia. Ela nos trata como se não fôssemos pessoas de bem.
Os benefícios a que X. se refere integram o projeto original das UPPs, que incluía, em um segundo momento, pós-pacificação, um braço social dentro das comunidades, com ofertas de serviços de saúde e educação, além de incremento econômico e investimentos em infraestrutura. E é disso que muitos moradores sentem falta. A maioria dos entrevistados (quase 60%) das 118 favelas pesquisadas gostaria que a UPP ficasse em sua comunidade, mas condiciona esta permanência a melhorias no programa, como a criação de mais projetos para os jovens (85,3%), treinamento adequado para os policiais militares (82,1%) e a oferta de “outros serviços além da polícia” (82%).
Na avaliação dos organizadores do estudo, os moradores gostariam que o projeto original da UPP fosse implementado.
— Como acontece com serviços como educação e saúde, que os moradores avaliam ser pior nas favela, mas nem por isso quer que eles deixem de ser oferecido. Eles querem ter Segurança Pública na comunidade. O que eles querem é que ela seja oferecida de outra forma. Eles não querem que a polícia vá embora. Neste sentido, podemos dizer que a UPP aproximou a favela da cidade, eles querem a polícia lá dentro, mas querem que ela seja melhor — avalia a cientista política Silvia Ramos, uma das coordenadoras do trabalho.
Para ela, as respostas ajudaram a derrubar vários mitos. Um deles era o de que os moradores passaram a ter uma vida mais tranquila depois da chegada das UPPs. É importante ressaltar que a pesquisa foi publicada um ano depois de os entrevistados serem ouvidos.
— Ouvimos muito o discurso de que, antes de as UPPs falirem, a vida dos moradores tinha passado por muitas melhorias. Os dados da pesquisa mostram que isso não é verdade, que a UPP não foi esta maravilha toda. Nas favelas, sempre houve problemas, e os moradores continuaram convivendo com eles. As exceções foram os tiroteios, que a maioria diz — que antes das UPPs — aconteciam menos e agora estão insuportáveis — analisa.
Esses moradores disseram que também querem o fim das incursões violentas e dos tiroteios, a melhoria no treinamento dos PMs para que estes agentes lidem de formar mais respeitosa com a população, a punição de desvios, a melhoria de condições de trabalho para PMs, mais efetividade no controle dos criminosos e a alardeada oferta de serviços públicos além do policiamento (UPP social). “Eles parecem querer nada mais do que a retomada do projeto original das UPPS”, diz Leonarda Musumeci, na pesquisa.
No quesito sensação de segurança, a percepção de que nada mudou é alta. Os entrevistados foram perguntados se sentiam mais seguros na comunidade antes da chegada da UPP, logo no início, no momento da pesquisa ou se o programa não fazia diferença. A última opção foi escolhida por 44% dos moradores. Outros 22,1% escolheram a época do estudo; 16,8%, antes da UPPs; e 14,7%, o início das Unidades de Polícia Pacificadora (14,7%).
Segundo os pesquisadores, os números demonstram um descompasso entre o que sente os moradores das favelas e os cidadãos do asfalto. A pesquisa mostra que a ideia – muito difundida pelos meios de comunicação – de que num primeiro momento a UPP tinha sido grande o impacto positivo nestas favelas, seria uma fantasia.
O curioso é que, nem mesmo para a economia local, a instalação destas unidades significou alguma mudança para quem mora em favelas com UPP. De acordo com o estudo, mesmo com relação à economia local (comércio e outras atividades econômicas que geram renda), a maioria (58%) considera que não houve nem melhora nem piora; 30% acreditam que a vida na favela melhorou; 10% diz que piorou e 2% não souberam ou não quiseram falar. Somente nas favelas do Centro e da Zona Sul, a sensação na economia foi positiva: 50% dos entrevistados afirmam que a economia da comunidade melhorou, contra 8%, que dizem que piorou. Já na Zona Oeste, só 26% perceberam alguma avanço e 15% afirmam que a situação piorou bastante.
Após a apresentação da pesquisa, nesta quarta-feira, a cientista política Silvia Ramos disse que, apesar das críticas ao projeto, acredita que ainda há solução:
— Se por um lado é muito ruim você ter a promessa não cumprida (dos projetos sociais e da polícia de proximidade), por outro lado, a gente já sabe como faz. Quando a UPP estava funcionando, vimos baixar os indices de criminalidade e todo mundo na cidade passou a olhar os policiais com outros olhos. Dá para fazer de novo, dá para recomeçar. Pelo menos nas favelas menores. Nas favelas grandes, acho que deveriam ser experimentados alguns modelos — disse ela, que afirmou acreditar que o declínio do projeto não está relacionado com a crise econômica do estado.
Segunda Silvia Ramos, o que faltou foi vontade política de dar continuidade ao projeto, que previa o policiamento de proximidade.
— O policial comunitário no mundo todo é assim. Não pode trocar tiros dentro da comunidade. Ele precisa ter uma retaguarda. É preciso ter um serviço de inteligência e a atuação de outros policiais que facam este combate ao tráfico.
Na primeira favela com UPP na cidade, a comunidade Santa Marta, em Botafogo, os moradores — acostumados a conviver com turistas, investimentos públicos e um clima de otimismo — vivem atualmente uma período de baixa.
— Nos bons tempos, recebíamos 10 mil turistas por mês na comunidade. Agora acho que não chegamos a 2 mil — afirmou a guia de turismo Verônica Moura, moradora da favela e uma das 11 guias do coletivo que atua na região.
O presidente da Associação de Moradores do Santa Marta, José Mario Hilário dos Santos, de 56 anos, lamentou que a comunidade, tratada como “garota propaganda” do programa, hoje esteja sofrendo com o esvaziamento do projeto.
— Até por se a primeira a receber a UPP, todos os investimentos foram feitos primeiro aqui. Tínhamos trabalhos das secretarias de habitação, cultura, esporte e lazer, com a presença da prefeitura e do governo do estado. Éramos o primo rico das UPPs. Hoje foi todo mundo embora. Somos de novo o primo pobre. — comentou José Mario que, no entanto, acredita que ainda é possível retomar os projetos sociais e resgatar o sonho de prosperidade dos moradores.
Como presidente da União Comunitária, José Mario tem contato com lideranças de outras favelas que receberam o projeto e diz que, entre a maioria, a reclamação é a mesma: as UPPs só levaram a polícia.
Assim como os moradores do asfalto, os que vivem nas favelas também acham que a UPP fracassou. Os pesquisadores decidiram avaliar a opinião dos entrevistados em relação às UPPs em geral e não apenas à comunidade em que eles vivem. Um conjunto de frases sobre o projeto foi apresentado. Mais de 2/3 concordaram com a afirmativa de que “a UPP foi só uma maquiagem”, e com a sentença: “a UPP é um projeto falido”. Entre os entrevistados, 54% acham que as UPPs vão acabar; 41% acreditam que vão continuar e 6% não responderam.
A professora do Departamento de Segurança Pública da UFF, a antropóloga Jacqueline Muniz, afirma que o problema não é a falta de continuidade do projeto, mas a ausência de um policiamento público nos moldes do que é oferecido no asfalto:
— As ações equivocadas se resolvem com segurança pública. O social tem outro campo de atuação. Comunidades expostas a conflitos demandam pelos serviços da polícia em qualquer lugar do mundo. Por mais que o projeto dê errado, a população quer segurança pública, o mesmo serviço oferecido para quem mora no asfalto. Eles querem o policiamento público, estatal. Uma polícia que deveria ser cidadã, que trata todos da mesma forma. O resultado não é surpreendente. A proteção é cara, excludente e desigual.
— As comunidades são feitas por segurança ilegal de milicianos e traficantes, que é seletiva e desigual. Por isso, a melhor opção é o policiamento público. A polícia só faz sentido no estado de direito. No caso das outras “formas” de segurança (da milícia e do tráfico), o “protetor” de hoje é o tirano de amanhã. Mesmo que o programa das UPPs não produza os resultados desejados, a população prefere a segurança do estado, mas eles deixam claro que não querem a polícia atual.
A mentalidade de que todos os moradores são suspeitos em potencial também é um dos fatores apontados pela pesquisadora como uma das causas de afastamento entre a PM e a população.
— Não se pode ver moradores como criminosos. A proximidade que deveria existir entre policiais e moradores acabou não acontecendo e tão cedo não vai prosperar. O policial de UPP hoje mais parece um soldado de condomínio. Eles não policiam. Só fazem abordagens e cercos. Eles foram jogados ali sem estrutura. Houve uma sabotagem interna de outros setores do estado. A Polícia Civil não atuou como deveria dentro do projeto, investigando e efetuando prisões. O programa das UPPs foi usado como bandeira eleitoreira. Criou-se novas unidades, sem condições, para fazer número — criticou a antropóloga.