A crise de segurança no Rio, que ganhou contornos de colapso na sexta-feira – quando pelo menos oito favelas foram palco de tiroteios -, foi parcialmente amenizada com o envio de tropas do Exército, mas a sensação de medo permanece na cidade. “Trabalho há mais de 30 anos na área e nunca vivi uma situação tão dramática de falta de política, incompetência, miopia e hipocrisia”, afirma a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes.
Nem a presença de 950 militares que cercam a Rocinha impediu que o traficante Rogério Avelino, o Rogério 157, voltasse para a favela, na madrugada do sábado, a bordo de um táxi cujo motorista foi feito refém por integrantes da facção do criminoso. O bandido trava uma disputa interna pelo controle do tráfico no morro. Irritado com a atuação de Rogério, seu substituto, o líder da organização, Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, preso na penitenciária federal de Porto Velho, a quase 3,5 mil quilômetro do Rio, ordenou uma invasão para expulsá-lo da Rocinha. O confronto entre os grupos não foi evitado pelos órgãos de inteligência de segurança do Estado. “Não há política de segurança. Há uma reação ao varejo do tráfico das favelas”, afirma Julita.
A volta de Rogério 157 ao morro, no sábado, tem o potencial de dar mais instabilidade à situação. Mais moradores abandonaram suas casas no fim de semana, com medo de ficarem no fogo cruzado entre traficantes e polícia. Na sexta-feira, os dois túneis e a autoestrada que ligam a zona sul à Barra da Tijuca ficaram fechados por mais de quatro horas. As vias dão acesso ao Parque Olímpico, que abrigou o Rock in Rio, festival encerrado ontem e que atraiu, em sete dias, uma média diária de 100 mil pessoas – equivalente à população da Rocinha.
Julita Lemgruber critica o fato de que a situação na favela de São Conrado tenha chamado mais a atenção da mídia e das autoridades do que o conjunto de comunidades que foram palcos de tiroteios – ou de outras regiões que frequentemente são vítimas da violência. Cerca de 7 mil alunos, de escolas públicas e particulares, ficaram sem aula na sexta-feira. Bairros de classe média, como Botafogo, onde se localiza o Morro Dona Marta, o primeiro a receber uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), em 2008, passaram a viver, nos últimos meses, uma rotina de insegurança, com assaltos, arrastões e tiroteios diários.
Para a socióloga, que já foi diretora do sistema penitenciário do Rio, as UPPs deram uma sensação de falsa segurança enquanto estiveram no auge como política de segurança implementada pelo ex-governador Sérgio Cabral, preso por corrupção desde novembro. Em sua avaliação, as UPPs estavam muito limitadas a uma área geográfica – importante para a realização da Copa do Mundo e da Olimpíada. Os crimes contra o patrimônio e contra a vida – que hoje assustam os moradores das áreas mais nobres – “já estavam crescendo assustadoramente” na Baixada Fluminense, enquanto a sociedade comemorava as UPPs. “As autoridades foram hipócritas e a mídia teve participação na venda dessa imagem de falsa segurança”, critica.
Atualmente, diz, há constantes relatos de senhoras que vão a supermercados na Baixada e têm suas sacolas de compras roubadas. Há crise de segurança e também social. “Estamos num país e numa cidade extremamente desigual. No Rio, é algo escancarado. Em São Paulo, a periferia está longe dos Jardins. Essa desigualdade brutal em algum momento cobra a conta”, diz.
Para a população mais pobre, ressalta Julita, o quadro é mais grave, pois os moradores ficam expostos à ação da polícia, que faz incursões violentas em suas comunidades, onde “direitos são desrespeitados” em nome do combate ao tráfico, porque são “pobres, negros e matáveis”. A pesquisadora questiona a ideia de que a polícia trava uma “guerra”. Julita aponta que, desde janeiro, a polícia do Rio matou 643 pessoas, enquanto 102 policiais foram mortos, dos quais apenas 22 em confronto no expediente. O restante, diz, morreu em outras circunstâncias, como assaltos, cujo crescimento também atingiu a população, ou durante a realização de ‘bicos’, quando as condições de trabalho muitas vezes são precárias. “Que guerra é essa com números tão desproporcionais? Na Rocinha, parece haver disputa dentro da facção. Mas quem mais provoca violência é a polícia”, afirma.
Para Julita, o Estado vive um vácuo de poder e uma crise de legitimidade: “Há um ex-governador e ex-secretários na cadeia. Isso não é trivial. O secretário de Segurança claramente não comanda as polícias, que atuam por conta própria. E há grande chance, é o que se comenta, de o atual governador ser preso, pelas acusações que vieram à tona contra ele na Lava-Jato”.
Por meio de nota, divulgada ontem, o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) relatou conversa com Michel Temer, no sábado à noite, e disse que o presidente garantiu que as forças federais estão à disposição do Estado até o fim de 2018. Pezão enviará, na próxima semana, à Assembleia Legislativa, um projeto de lei para a criação de um fundo de recursos para a área de segurança, que receberá 5% da arrecadação dos royalties do pré-sal e permitirá aportes da iniciativa privada.