“Isso aqui é o último baile… do Titanic” disse um dos participantes de um encontro de especialistas em segurança pública, semana passada.
Sempre faltou diálogo entre governantes e estudiosos de segurança pública, mesmo nos bons tempos de pacificação (2009-2013). Policiais resistiam às mudanças recomendadas pelos especialistas. Apesar da queda nos índices de crime e da violência, continuava difícil mudar a cultura de “bandido bom é bandido morto”; policiais militares chamavam os policiais de pacificação, inicialmente novatos na corporação, com treinamento e uniforme diferenciados, de “Smurfs”.
Hoje, o abismo é maior do que nunca. Apesar de provas contra a efetividade, colhidas em dezenas de cidades pelo mundo, inclusive no Rio de Janeiro, os novos governantes, do estado e da União, persistem na ideia de precisarmos de mais violência para combater o crime.
Informações do Observatório da Intervenção, disponibilizadas ontem (virá um relatório completo em fevereiro), apontam que a “intervenção federal pelas Forças Armadas não resolveu os problemas estruturais da segurança pública do Rio. O que vimos foi a reafirmação da estratégia de confrontos armados, gastos concentrados em grandes operações e a ausência de uma reforma estrutural da política de segurança”.
Os dados mostram que mortes e roubos de rua cresceram, enquanto o único crime que diminuiu sensivelmente foi o roubo de cargas, o que demonstra uma prioridade maior para bens do que para vidas.
Preocupam mais ainda, no Rio, indícios de crescimento do poder miliciano. Será que está de fato tomando as rédeas da metrópole, como indica este artigo, publicado ontem?
Explica nele o autor Washington Fajardo, ex assessor do ex prefeito Eduardo Paes e ex presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, que na “ausência histórica do Estado brasileiro para ordenar o território urbano, fomentar políticas habitacionais e prover segurança pública, um poder paralelo, criminoso e terrorista, foi montado e se desenvolveu. As milícias deram respostas ao medo da população, ofertando ordem; forneceram TV a cabo pirata, dando informação; resolveram a mobilidade, controlando vans; depois venderam bens de consumo básico, como água e gás.”
As mortes da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, há nove meses, apontam o poder e a ousadia desse setor. Como pode uma investigação demorar tanto tempo? E quando acontece uma ação para buscar evidências e prender suspeitos, como foi o caso na quinta-feira passada, surge uma grande confusão (com a possibilidade dos alvos terem sido avisados). Não sabemos ainda, apesar dessa ação, quem os matou. Nomes de supostos milicianos são os que mais aparecem na mídia. A oposição da Marielle a negócios imobiliários de milicianos na Zona Oeste teria levado ao assassinato dela e de Gomes.
Na última semana, tivemos a descoberta (quase por acaso) de um plano de milicianos para assassinar o deputado federal eleito pelo PSOL, Marcelo Freixo (hoje deputado estadual).
Suscita desconfiança enorme a decisão do governador eleito do Rio, Wilson Witzel, de extinguir a secretaria estadual de Segurança Pública. Como administrar as polícias sem ela? Já era difícil a gestão com a secretaria, enfraquecida pelo corporativismo, rixas históricas (até, inclusive, dentro de cada corporação) e a corrupção. Especialistas –inclusive os militares já com nove meses de experiência aqui, da Intervenção Federal — concordam que precisamos de mais integração e cooperação entre as polícias, não menos. Para tanto, o ex secretário José Mariano Beltrame instituiu as RISPs que, ao incentivar a cooperação e compartilhamento de informação, por um tempo contribuíram à redução do crime.
Num tuíte, Witzel pouco explicou como fará, em termos de gestão: “O fim da Secretaria de Segurança é uma medida necessária. Nós vamos otimizar as ações, aproximar as polícias, inclusive com a Policia Federal, para investigar a fundo e chegar aos “barões da droga”, aos executivos do crime, desarticulando essas quadrilhas.” Em outro, disse que a “cooperação entre as polícias Civil e Militar será uma nova página no combate ao crime organizado no Rio de Janeiro”.
De acordo com o site G1, Witzel “estuda criar uma espécie de gabinete de segurança, que será ligado à Casa Civil. O gabinete irá abrigar o Instituto de Segurança Pública (ISP), a Subsecretaria de Inteligência e a Corregedoria Geral Unificada (CGU)”.
Na sua entrevista publicada hoje no Globo, o interventor general Walter Braga Netto afirma que, na ausência de uma secretaria, quem terá que administrar diferenças entre as polícias (reduzidas, de acordo com o general, durante a intervenção) será o futuro governador.
Rixas corporativas podem chegar a ser menos preocupantes do que outras questões. Quem se responsabilizará pelo comportamento de policiais em favelas, agora incentivados pelo futuro governador ao “abate” de quem carrega fuzil? Como se certificar de que cada policial terá o treinamento adequado para mirar (e acertar) somente traficantes armados? Ou que os drones atiradores propostos pelo Witzel não serão hackeados, vendidos ou abatidos, eles mesmos, para uso impróprio?
É bom lembrar que, de acordo com o Observatório da Intervenção, os depósitos de munição da Polícia Militar hoje contam com controles na base de papel apenas, sem câmeras de segurança.
A diminuição da estrutura formal de gestão para as polícias pode aumentar, de maneira perigosa, a autonomia destas. Podemos ver menos transparência e responsabilidade direta à sociedade como um todo. Os problemas existentes nas polícias — em grande parte, decorrentes da falta de condições adequadas salariais, de trabalho e equipamento (como já reportado no blog) — levaram a “soluções” parciais, como empresas de segurança particular (muitas das quais pertencem a policiais), as mini-forças tipo “Centro Presente” e milícias.
Trata-se de uma colcha de retalhos cheio de buracos e padrões destoantes, com resultados fracos para a sociedade como um todo.
Por enquanto, vê-se poucas propostas oficiais para criar uma política de segurança pública baseada em dados e práticas já comprovadas. No meio tempo, os especialistas — diante de portas governamentais fechadas — propõem, entre outras ideias, criar uma entidade em conjunto e lutar pelo resguardo de alunos de escolas públicas em favelas.
Talvez seja a hora de lutar, também, por mais diálogo.