DIAS APÓS TOMAR POSSE como presidente da República, Jair Bolsonaro assinou o primeiro dos sete decretos sobre armas que ele editaria este ano. Quando canetou o decreto 9.685, Bolsonaro estava cercado de eufóricos parlamentares favoráveis à medida fazendo arminha. Mas há gente ainda mais sorridente: importadores de armas estão rindo como nunca antes na história desse país.
O aumento começou já em 2018 – ano da campanha eleitoral inflamada pelo discurso pró-armas. Neste ano, porém, com o decreto que flexibiliza a posse e a fissura no monopólio da Taurus, denunciada pelo Ministério Público por venda de armas com defeito, o número explodiu. Um relatório obtido pelo Intercept, feito com base em dados de importação de armamentos do Ministério da Economia, Comércio Exterior e Serviços, mostrou que o número de armas importadas aumentou 1.473% este ano em comparação com 2016. Naquele ano, 2.390 armas foram importadas. Só em 2019 o número subiu para 37.589.
Após certa estabilidade e quedas consecutivas em 2014 e 2015, o crescimento foi meteórico pós 2016, crescendo consideravelmente em 2018 – ano de plena campanha arminha na mão – e explodindo em 2019. Só em relação a 2017, o aumento foi de 359%.
Esse mercado de importação de armas movimentou, entre janeiro e setembro, mais de 15 milhões de dólares – aproximadamente R$ 60 milhões. A maior parte desse valor – R$ 44 milhões – foi movimentada por empresas do Rio de Janeiro, estado diariamente nos holofotes pela atuação nefasta de milícias.
O país preferido pelos importadores é a Áustria, sede da Glock, cuja pistola mais barata custa – sem impostos – em média 644 dólares, o equivalente a R$ 2,7 mil. Há também grandes importações dos Estados Unidos, República Tcheca e Argentina.
A importação de partes ou acessórios para armas seguiu o mesmo ritmo de alta. O volume passou de 3.751 quilos em 2016 para 36.873 até setembro em 2019 – quase dez vezes mais. O mercado, que faturava pouco mais de R$ 1,5 milhão (283.861 dólares), saltou para cerca de R$ 8,5 milhões (2.129.956 dólares). Em 2019, dez das 18 importações foram feitas para o Rio Grande do Sul, que comprou prioritariamente da Itália – país sede da Beretta, maior concorrente da Glock.
Embora a Taurus ainda detenha tecnicamente o monopólio de produção e comercialização de armas no Brasil, o histórico de falhas e acidentes com suas armas fez com que a legislação se flexibilizasse. Neste ano, as polícias de São Paulo e do Rio de Janeiro começaram a comprar armas de fora do país. A vencedora das duas licitações foi a Glock, que receberá R$ 35,7 milhões do governo de SP e R$ 43,3 milhões do governo do Rio para fornecer pistolas.
Rio de Janeiro, o paraíso das armas
Os dados do Ministério da Economia, Comércio Exterior e Serviços mostram que o volume de armas que chegou ao Rio de Janeiro neste ano é quase o total importado em 2018 em todo o país. Cerca de 27.430 armas chegaram ao estado este ano – no Brasil, no ano passado, foram 28.319.
Quando uma arma é apreendida, saber seu calibre, marca e origem, é essencial para descobrir se ela foi, por exemplo, desviada de uma empresa de segurança privada que a comprou legalmente. E as estatísticas da Polícia Federal mostram que, entre 2006 e 2016, 30% de todo o arsenal de empresas privadas de segurança – compradas legalmente – foram parar na mão de criminosos.
Quando o Instituto de Segurança Pública, o ISP, foi criado para monitorar estatísticas de crimes no Rio de Janeiro, os pesquisadores se esforçaram para detalhar melhor o armamento. “Na época se mapeou todo armamento apreendido no Rio de Janeiro, os países de origens, quais as possíveis rotas para que essa arma chegasse ao Rio de Janeiro, quais os locais onde eram encontradas e quais as munições que estão sendo utilizadas”, me disse Ana Paula Miranda, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense e uma das idealizadoras do ISP. Hoje, esse esforço se perdeu.
“O setor armamentista lucra como nunca antes, temos mais armas nas ruas, mas não temos nenhuma clareza sobre o que acontece com elas depois que entram no Brasil.
Entender a chegada de armas de grosso calibre, cada vez mais comuns, ajuda a entender a organização do crime no estado, até então centralizado na região metropolitana. “Era impensável há cinco, sete anos vermos criminosos utilizando fuzis ou outras armas de grosso calibre na Baixada Fluminense. Em 2019, o uso se tornou corriqueiro”, me disse Pablo Nunes, subcoordenador do Centro de Estudos da Criminalidade [coordenador adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (nota da edição)]. Para ele, esse pode ser um indício que armas pesadas estão chegando pelo interior. “Alguns municípios registraram a primeira apreensão de fuzis em toda a história, revelando que esse processo tem se interiorizado com certa velocidade. Ter dados para compreender essas demandas por armamentos mais pesados ajuda a jogar luz nessas novas dinâmicas e, muitas das vezes, invisíveis aos analistas e gestores públicos que se concentram na capital do estado”.
O ano ainda não fechou e o ministério não consolidou seus dados. Mesmo assim, já dá para saber que, com as meias informações disponíveis, vai continuar difícil para os pesquisadores estabelecerem estratégias para enfrentar o desvio de armas, como um simples cruzamento de informações. O setor lucra como nunca antes, temos mais armas nas ruas, mas não temos nenhuma clareza sobre o que acontece com elas depois que entram no Brasil, mesmo com a evidência de desvios detectado pela Polícia Federal.
Os esforços outrora empenhados para se entender como as armas param nas mãos de milicianos e traficantes não são mais prioridade. Um estado como o Rio de Janeiro, que possui um contexto de segurança completamente específico, deveria ter políticas específicas. Mas isso, claro, caso o plano fosse inibir o crime.