Acusados de matar Evandro Rosa dos Santos em abril depõem, mas julgamento não tem data
Os números assombram Luciana dos Santos Nogueira, que ainda não consegue acreditar mesmo oito meses depois. Foram 257 tiros disparados na direção dela e de sua família quando iam de carro para um chá de bebê numa tarde de domingo em abril. Uma saraivada inesperada ainda sem explicação clara.
Dessas balas, 62 penetraram no Ford Ka em que Luciana estava com seu marido, o padrasto e o filho de sete anos.
Mesmo em um país que já está acostumado com a violência extraordinária de suas forças de segurança um país em que a polícia estadual do Rio matou o número de 1.686 pessoas neste ano, a morte do músico Evandro Rosa dos Santos chama a atenção pela falta de sentido.
Agora os brasileiros vão descobrir se o estado é capaz de responsabilizar seus agentes. Nesta semana, os 12 envolvidos no caso prestaram depoimento pela primeira vez num tribunal militar. São acusados de matar Santos, 46 anos, e um catador de lixo reciclável que estava no local; de colocar a comunidade em perigo e de deixar de prestar socorro às vítimas. Ainda não foi marcada a data do julgamento.
Os soldados, que estavam policiando um bairro dominado por quadrilhas na zona norte do Rio, não negam ter atirado contra o carro. Disseram pensar que o veículo estava vazio. Falaram que estavam respondendo a uma denúncia de assalto e que agiram em defesa própria quando o assaltante atirou contra eles.
A versão entra em conflito com declarações anteriores e com as evidências. Não foram encontradas armas no local. Testemunhas disseram que ninguém atirou exceto os militares. E, pouco após o incidente, oficiais militares disseram que os soldados atiraram no Ford Ka porque o confundiram com o carro de um bandido. “Fantasiosa” foi como a promotora militar Najla Palma qualificou a versão do réu.
Em um estado onde críticos dizem que a polícia rotineiramente mata com impunidade, advogados e entidades de defesa dos direitos humanos dizem que as inconsistências, revisões de fatos e alegações de autodefesa chamam a atenção para os problemas endêmicos enfrentados por investigadores quando querem responsabilizar policiais por seus atos.
“A impunidade é a regra nas mortes e nos abusos cometidos pela polícia”, disse Maria Laura Canineu, diretora do Human Rights Watch no Brasil. “Este caso parece seguir esse mesmo roteiro. A polícia alega que estava reagindo a um tiroteio. As pessoas no local dizem que não houve tiroteio algum.”
Entre 2010 e 2015, período no qual 3.441 pessoas foram mortas por policiais, menos de 0,5% das mortes resultou em indiciamentos criminais, segundo a Human Rights Watch. O abismo crescente entre o número de mortos e a aparente impunidade ressalta o preço que os brasileiros têm se disposto a impor no esforço para combater a criminalidade violenta.
O presidente Jair Bolsonaro já disse que quer ver bandidos “morrer na rua igual baratas”. O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que despachou atiradores de elite, helicópteros e blindados às favelas cariocas para “neutralizar” bandidos, garantiu ao público que “a polícia vai fazer a coisa certa: Vai mirar na cabeça e… fogo!”.
Esse tipo de discurso, dizem críticos, normalizou os assassinatos extrajudiciais, fazendo com que seja muito mais difícil levar os responsáveis à justiça.
A cientista social e estudiosa da violência Silvia Ramos, da Universidade Cândido Mendes, no Rio, chama a isso “a cultura do uso da força excessiva”, que transcende os políticos.
“Na grande maioria desses casos, pessoas da comunidade local acham que foi tudo parte da guerra contra o crime”, disse Ramos. “Esse tipo de pensamento contribui para a legitimação maior do uso da força policial”.
O promotor estadual Paulo Roberto Mello Cunha já enfrentou dificuldades para levar à Justiça processos contra policiais. As testemunhas vivem em comunidades de risco e têm medo de falar. As cenas dos crimes não são preservadas. Algumas pessoas acham que as vítimas mereceram o que aconteceu.
“A vítima tem que provar sua inocência, mesmo que não haja nenhuma acusação formal contra ela”, afirma. “Existe essa ideia de que a polícia deve matar bandidos e não prendê-los. Mas as pessoas que pensam assim esquecem que o descontrole e a violência policial são os principais fatores que alimentam a corrupção da polícia.”
Segundo Maria Laura Canineu, os investigadores raramente adotam as medidas mais elementares que possibilitariam responsabilizar os autores dos crimes. A incerteza favorece a narrativa policial de ter agido em defesa própria.
Para críticos, as únicas vezes em que isso não ocorre é quando um caso de matança pela polícia é tão extremo e revoltante que a população clama por ação —quando uma criança é abatida no fogo cruzado, por exemplo. Ou quando militares disparam dezenas de balas contra um carro que levava uma família.
Há muitas coisas sobre aquele dia em que Luciana dos Santos ainda mal consegue acreditar. Aconteceu numa tarde de domingo. Seu padrasto e seu marido, que ela conhecia desde criança, estavam no banco da frente. Então começou um barulho como se eles tivessem penetrado no meio de uma guerra. Houve sangue, e seu padrasto tomou a direção, que escorregou das mãos de seu marido.
“Fique calmo”, disse Luciana a seu marido. “Calma.” Ela saiu do carro. “Socorro, nos ajudem!”, ela gritou. “Meu marido está aí dentro!”
Um catador de lixo correu na direção deles, mas foi derrubado a tiros.
Nesta semana, Luciana ouviu os soldados contarem uma versão muito diferente do que ocorreu. Eles disseram que Luciano Macedo, o catador que correu para ajudar, tinha assaltado um carro e atirado contra a polícia. E que as pessoas –familiares de seu marido— que se reuniram para chorar os mortos foram “uma artimanha dos traficantes”.
Luciana abanava a cabeça, chorando. Não bastava a perda do marido, ainda tinham que difamar a família dele?
“A justiça aqui sempre falha. Se eles não forem punidos, eu também vou morrer. Vou morrer.”