Uma tecnologia, que até há pouco tempo só existia em filmes de ficção científica, agora tem sido muito difundida —e debatida— no Brasil e no mundo: o reconhecimento facial. Como ele funciona? O que tem sido aplicado no Brasil?
O reconhecimento facial é um método que identifica ou verifica a identidade de uma pessoa usando a imagem do rosto. Acontece da seguinte forma: uma câmera inteligente capta uma face e consegue reconhecer características como a distância entre os olhos, a largura do queixo e o comprimento da boca.
A imagem capturada é lida por um software, que faz como se fosse uma assinatura facial, semelhante à digital de um dedo. Essa assinatura é comparada com outras já de um banco de imagens ou de assinaturas de pessoas que se pretende identificar. Se for compatível, a pessoa é reconhecida.
“São várias etapas: desde a coleta e filtragem dos dados, da preparação da base que será usada até tentar fazer com que o match aconteça”, explica Nina da Hora, cientista da computação e colunista da revista MIT Technology Review. “Esse treinamento é o algoritmo tentando reconhecer o que é um rosto e partes dele que conseguem tornar o ‘match’ mais preciso”.
Esse sistema já é presente em diversas situações do nosso cotidiano. Está nos populares filtros do Instagram, no cadastramento de clientes de bancos digitais e no sistema de acesso de muitos modelos de celular.
Basicamente, o reconhecimento facial pode ser usado de duas formas.
No primeiro caso, serve para identificar e autenticar o usuário de um serviço ou produto. Desbloqueio de celular ou validação de conta bancária estão nessa categoria. Nesse caso, a câmera do smartphone é utilizada para verificar o rosto do dono do aparelho, por exemplo. A pergunta que a tecnologia faz é: você é quem afirma ser?
A segunda possibilidade é a do reconhecimento para identificação. Um exemplo é o uso de câmeras de monitoramento nas ruas. A pergunta aqui é: quem é você? A partir daí, o sistema capta seu rosto e compara com imagens de uma base de dados, que pode ser uma lista de procurados pela Justiça, de pessoas desaparecidas ou de títulos de eleitor.
Essa aplicação tem sido difundida pelo setor público nos últimos anos. Segundo um estudo do Instituto Igarapé, o reconhecimento facial com esse caráter mais público é usada no país desde 2011. Até 2019 foram ao menos 47 casos de implementação de reconhecimento facial em 15 estados.
Com o projeto-piloto batizado de Em Frente Brasil, cinco municípios aderiram voluntariamente e receberam R$ 19 milhões em 2019, e mais R$ 25 milhões em 2020. O objetivo da pasta foi fazer experimentos para embasar a criação de um programa nacional voltado à investigação de casos mais graves, como homicídios e crimes violentos.
Todos os testes já foram encerrados, e os resultados estão em processo de avaliação. O acesso aos resultados, porém, é restrito, informa o Ministério da Justiça. Está previsto que o “Em Frente Brasil” deve ser expandido para outros 15 municípios, mas ainda não há calendário para essa nova fase.
De acordo com o Lapin (Laboratório de Políticas Públicas e Internet), foram realizados ao menos 22 casos de monitoramento facial pelo governo em 2021. O relatório Vigilância Automatizada, publicado em julho deste ano, mostra algumas tendências da implementação da tecnologia.
Um dos destaques é o país de origem dos sistemas, explica Eduarda Costa, coordenadora do projeto do Lapin. “São provenientes, principalmente, da China e de Israel”, afirma ele.
Costa destaca o caso de Mogi das Cruzes, em São Paulo, onde a tecnologia foi usada em um evento local em 2019. A prefeitura fez uma parceria com a empresa chinesa Dahua, que doou os equipamentos sem custos para o município.
Segundo o relatório do instituto, a parceria foi motivada com a intenção de se tornar cidade-irmã de YongKang, na China. A reportagem entrou em contato com a prefeitura e com a Dahua, mas não teve resposta até a publicação deste texto.
Como o reconhecimento facial usa dados da população, algumas questões são levantadas: quem pode ter acesso aos dados? Por quanto tempo? Qual é a finalidade? Qual banco de dados vai ser usado? E qual a precisão da tecnologia?
Segundo a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), o reconhecimento facial se encaixa no item que trata de dado pessoal sensível. Ou seja, informação mais íntima, que precisa de um contexto e que, dificilmente, pode ser modificada. Além da face, nessa categoria estão entonação da voz e íris.
No caso do uso para segurança pública, segurança nacional, segurança do Estado e investigação criminal, é necessário lei à parte, que ainda está em debate na Câmara dos Deputados.
Os pesquisadores destacam que outro ponto sensível nesse tipo de uso é a acurácia: a eficiência em reconhecer uma pessoa, e a falta de transparência dos resultados.
Em um caso no Rio de Janeiro, em 2019, uma senhora inocente foi confundida com uma criminosa, que já estava presa desde 2015. A Polícia Militar do Rio prendeu 63 pessoas por meio do sistema.
A PM do Rio não informou se existe um relatório público ou a porcentagem de acertos e erros do reconhecimento. O projeto foi interrompido por causa da pandemia, mas a polícia também alega que o sistema deve retornar somente após uma definição jurídica sobre o tema.
“A tecnologia leva a uma série de discriminação particularmente frente a certos grupos da sociedade, principalmente com pessoas negras, onde os sistemas têm falhas de leitura”, diz Christian Perrone, pesquisador de direitos e tecnologias do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio).
“Já fizemos uma série de testes no Brasil que mostraram que a maior parte das tecnologias tem uma taxa de acerto muito menor frente a rostos de pessoas negras.”
Para Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, os casos brasileiros levantam dúvidas sobre sua aplicação.
“Essas tecnologias já são conhecidas internacionalmente pelos seus erros, principalmente os que recaem sobre a população negra”, afirma.
“Já sabendo do histórico de discriminação com a população negra, é muito grave que a gente tenha no país um avanço gigantesco no uso dessa tecnologia sem que haja uma reflexão sobre o seu impacto”.