Não basta apontar apenas as polícias como agentes da violência estatal
Nos últimos meses, o registro em imagens de uma série de abordagens policiais abusivas contra pessoas negras recolocou em pauta o debate sobre quem são os responsáveis pelo viés racial na ação policial e quais são as saídas para este estado de coisas tão perturbador.
Muito se fala sobre a importância do controle das polícias, sobre o uso das tecnologias e sobre o papel das corregedorias e das instâncias de controle; todavia nem sempre estamos atentos ao peso da atuação dos atores do sistema de Justiça na manutenção da violência institucional contra pessoas negras no Brasil.
A pesquisa Elemento Suspeito, publicada recentemente e coordenada pelo CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), descreve com muita consistência a relação entre o racismo e atividade policial. Além de revelar a dimensão traumática dessas abordagens, mostra que, nos últimos anos, houve uma radicalização do foco no elemento suspeito com o aumento dos casos de abordagens policiais abusivas na cidade do Rio de Janeiro e das interações dos cidadãos com a polícia.
Na pesquisa, realizada pelo Datafolha, constatou-se que os jovens negros são os maiores alvos dos agentes de segurança; que o percentual de pessoas negras abordadas pela polícia chega a 63%; e que um quinto (17%) dessas pessoas já foi parada mais de dez vezes por uma autoridade policial. São dados que revelam o total descontrole dessas instituições e expressam a forte tolerância social com abusos e ilegalidades contra a população negra.
Segundo a pesquisa, as abordagens policiais ocorrem majoritariamente sem mandado judicial e são realizadas quando essas pessoas estão andando a pé, na rua ou na praia, em vans ou Kombis, no transporte público ou em um evento ou festa. São abordagens que incidem majoritariamente sobre pessoas negras, revelando ao mesmo tempo um baixo padrão de legalidade e um forte viés discriminatório.
A lei manda que abordagens sem mandado sejam excepcionais e ocorram apenas quando houver “fundada suspeita”, mas nenhum policial, em nenhum momento do seu trabalho, é instado a justificar a razão de sua abordagem. A polícia não produz qualquer registro daquilo que faz, e o Ministério Público, órgão que constitucionalmente deveria supervisionar o trabalho da polícia, tampouco está interessado em exercer tal controle.
As pesquisas que vimos realizando no âmbito do Núcleo de Direito e Justiça Racial da FGV São Paulo, em parceria com o Afro/Cebrap, confirmam a tolerância com práticas policiais abusivas por parte do Judiciário e se soma a vários outros estudos que têm apontado a gravidade do problema. Em levantamento feito junto aos Tribunais de Justiça de sete unidades da Federação (Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Paraná, Pará e Sergipe) verificamos uma forte tendência do Poder Judiciário a validar processos em que pessoas ou residências periféricas foram abordadas ilegalmente, com base em suposta denúncia anônima ou na informação genérica de terceiros durante o patrulhamento policial.
Em buscas domiciliares, que exigem a existência de mandado judicial prévio e justificado, sob pena de ferir direito fundamental, a maior parte dos julgados acolhe a versão policial de que o acesso à residência foi “franqueado” espontaneamente com vistas a substituir a necessidade de autorização judicial. A deferência que promotores, juízes e desembargadores têm diante da versão dos policiais é embasada em uma criação cerebrina, que virou jurisprudência, de que a palavra do policial é portadora de fé pública. A tese serve de escudo para a investigação de abusos em várias frentes: não só em relação a abordagens abusivas e violentas, mas também na justificação de arquivamentos em casos de execuções em que os policiais envolvidos alegam ter agido em legítima defesa.
Não basta apontar apenas as polícias como agentes da violência estatal. É necessário também iluminar a chancela judicial conferida para que pessoas sejam vítimas de abordagens abusivas e discriminatórias. É fundamental que se implique juízes e promotores nesta tarefa, fundamental, de desautorizar a violência contra a população negra.
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Felipe da Silva Freitas
Professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e pesquisador do Núcleo Justiça Racial e Direito da FGV-SP
Marta Machado
Professora da Escola de Direito de São Paulo (FGV) e coordenadora do Núcleo Justiça Racial e Direito; é pesquisadora do Cebrap