Atendimentos precários e falta de estrutura para investigar são gargalos apontados por pesquisa
Entre 2011 e 2020, 50 mil pessoas desapareceram no estado do Rio de Janeiro. Os números mais do que justificam a construção de políticas públicas articuladas para facilitar a solução dos casos, mas isso não ocorre. A dificuldade em obter respostas começa no atendimento a quem vai buscar ajuda — em sua maioria, mães negras e periféricas.
Uma pesquisa divulgada na quinta-feira, 26 de maio, pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) se debruçou sobre os processos violentos enfrentados por familiares de desaparecidos e analisou lacunas de investigação.
O levantamento organizado ao longo do ano de 2021 demonstra que o problema começa no registro da ocorrência, conforme aponta Giulia Castro, assistente social, pesquisadora no Cesec e uma das responsáveis pelo estudo. Giulia afirma que, sem serviços especializados à altura da demanda, os familiares que já passam por momentos de dor precisam ainda comunicar o desaparecimento em delegacias de homicídios.
Nos municípios que não possuem unidades, a ocorrência é informada em delegacias distritais, onde o atendimento é carregado de preconceito e crianças e adolescentes são enquadrados em um “perfil padrão”.
“Quando a mãe procura o filho adolescente, pode ouvir que a menina deve estar no baile funk ou fugiu com o namorado, que o menino deve estar envolvido com tráfico. Pedem para aguardar de 24 a 48 horas para registrar. Isso submete a mãe à violência, negligência e dificulta o acesso”, explica Giulia.
Quando a mãe procura o filho adolescente, pode ouvir que a menina deve estar no baile funk e o menino envolvido com tráfico. Pedem para aguardar de 24 a 48 horas para registrar
Ainda que a legislação brasileira determine a obrigatoriedade do registro imediato de desaparecimento, muitas delegacias ignoram essa diretriz. Qualquer uma pode fazer o registro da ocorrência, mas nem todas têm autonomia para investigar — outro empecilho para a celeridade fundamental.
Obstáculos — Como não constitui crime até que se prove o contrário, os casos de desaparecimentos não parecem ser prioridade para o Estado. Uma única unidade especializada em investigar e amparar famílias, a Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA), criada em 2014, fica na zona norte da capital carioca e é responsável por atender 16 milhões de habitantes.
A localização dificulta o acesso a registros onde eles mais acontecem, como a Baixada Fluminense e a região Niterói-São Gonçalo, que registraram o equivalente a 38% dos casos do estado e 46% dos da região metropolitana. Em 2019, o Rio de Janeiro ocupava o sexto lugar em números absolutos de casos de pessoas desaparecidas.
Após o boletim de ocorrência, as investigações deveriam se iniciar e, conforme orienta a portaria da Polícia Civil, um ofício deveria ser emitido para unidades de saúde, assistência social e outros braços.
Porém, somente a DDPA dispõe de estrutura para o registro técnico adequado, que facilitaria a solução de casos, conduziria todo o processo de investigação e ofereceria o acolhimento psicológico necessário aos familiares.
A ausência de medidas legais não é justificativa. Nos últimos três anos, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) reuniu 32 projetos de lei sobre o tema, porém, a grande maioria não saiu do papel.
Elas por elas — A junção de atendimento desumanizado e falta de resultados gerou a criação de organizações não governamentais (ONGs) lideradas por mães que desempenham o papel de tentar localizar os desaparecidos.
Uma situação capaz de mudar completamente a vida dessas mulheres. Dedicadas aos casos de seus filhos, muitas ficam desempregadas, entram em depressão e precisam de amparo psicológico e financeiro inexistentes.
Negra e divorciada, Luciene Torres está à frente da ONG Mães Virtuosas do Brasil. Ela tem 60 anos e abandonou o emprego de supervisora hospitalar para procurar a filha, Luciane da Silva. A menina tinha 9 anos quando desapareceu, em agosto de 2009 — saiu pela manhã em Nova Iguaçu, onde morava, para comprar pão. Nunca mais voltou. Quatro testemunhas a viram a chorando e sendo levada pelo suspeito, que chegou a ser preso, mas acabou solto por falta de provas.
A mãe foi impedida de conversar com o homem, sob alegação de preservar sua integridade. No inquérito, a foto de uma pessoa branca de olhos azuis, como relataram as testemunhas, foi trocada pela imagem de um homem negro, sem qualquer ligação com o caso. “Fui ao Ministério Público e me orientaram a buscar novas provas para desarquivar o caso. De lá para cá, nada foi feito”, critica.
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A dona de casa Márcia de Albuquerque, 57 anos, mãe de três filhos, ainda busca por Jowayner de Albuquerque, desaparecido em Campo Grande há “nove anos, três meses e 10 dias”, conta. Sem apoio da polícia, uma das lideranças da ONG Mães Braços fortes começou a procurar pelo jovem que completará 26 anos em 5 de junho e desapareceu em Campo Grande, bairro do Rio de Janeiro.
“Não me ouviram, não quiseram saber de nada e disseram que eu tinha de me virar. Até o terceiro dia eu saí para procurar. No quarto, quinto e sexto dias eu não me lembro mais o que aconteceu, parece que sofri uma amnésia. Foi somente entre o sexto e sétimo dias que eu consegui fazer o boletim de ocorrência. Fui procurar, mas, infelizmente, uma andorinha só não faz verão, não consegui saber mais nada”, lembra.
Gargalos — A partir da mobilização dos movimentos de familiares, em 2009 foi criado o Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Desaparecidos para a inclusão de dados a partir de qualquer instituição pública ou privada. A plataforma, porém, foi abandonada e uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Desaparecimento de Crianças e Adolescentes, instaurada na Câmara dos Deputados em 2008, apontou que o mecanismo estava defasado.
Passados 10 anos, foi instaurada a lei que instituiu a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, responsável por recriar o Cadastro Nacional. Apesar de apresentar parâmetros importantes, mais uma vez, a ausência de articulação entre governos federal, estaduais e municipais fez com que não fosse efetivamente implementada.
Em dezembro de 2021, uma CPI no Rio de Janeiro discutiu casos de desaparecimento de crianças e adolescentes durante nove meses. O relatório, porém, até o momento não foi divulgado.
De acordo com Giulia, o desaparecimento, ainda que seja um tema relevante, é pouco falado porque escancara mazelas do Estado, a exemplo de homicídio com desaparecimento de corpos, sequestro e tráfico humano. “Há uma série de leis e projetos, mas as iniciativas não saem do papel. Para que fossem aplicadas, seria necessário que tivéssemos ações articuladas, a começar por um modelo padronizado de registro do BO”, afirma.