Violência. Pesquisa feita por sociólogo mostra que, a cada dez mortes ocorridas na cidade do Rio, o crime organizado está por trás de sete. Homens, jovens, solteiros e negros são as principais vítimas dessa barbárie.
Em seis dias de conflito na Rocinha, 12 mortos. Mas a disputa à bala pelos pontos de venda de drogas na favela é apenas a face mais visível da guerra civil não declarada em que traficantes mergulharam o Rio. Os estragos são bem piores: o crime organizado está por trás de nada menos que sete de cada dez mortes ocorridas na cidade. A conclusão é de pesquisa realizada pela equipe do sociólogo Gláucio Ary Dillon Soares.
Especialista em violência na América Latina, Soares se dedica a esse estudo desde o ano passado. Segundo ele, as principais vítimas da violência são homens, jovens, solteiros e negros, que geralmente morrem com tiros de revólver calibre 38. Mas há também as vítimas ocultas — parentes e amigos — que desenvolvem comportamentos doentios depois do trauma.
“Definitivamente, não há mais limites, todos foram ultrapassados. Faltam ações concretas e medidas pontuais”, observa o proofessor do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes e do Instituto de Pesquisas Universitárias do Rio. A violência desencadeou uma série de reações naqueles que perderam alguém, por causa dela. A pesquisa revelou, por exemplo, que o contato das chamadas vítimas ocultas com representantes do Estado, ou seja, governos e segurança, é extremamente negativo. “Não há confiança”, analisa ele.
Ao fazerem uma análise ampla sobre o número de mortos no país, os pesquisadores concluíram que mulheres, casadas, brancas e com mais de 60 anos têm 92 vezes menos chances de morrerem do que homens, solteiros, negros e com menos de24 anos. Nessa avaliação, foram consideradas as mais variadas causas de mortes, desde afogamento, trânsito, homicídios e doenças.
Crime à carioca
No Rio, as chamadas armas brancas, como porretes, facas e facões, foram substituídas principalmente pelos revólver calibre 38 e pistolas, segundo a pesquisa. De acordo com os dados, a combinação mais grave nos crimes cariocas envolve a associação de drogas com o uso de armas. “É uma combinação absolutamente letal”, analisa o sociólogo Gláucio Soares.
Para Soares, a proibição da venda de armas aprovada recentemente colaborará para diminuir o número de vítimas no país, mas é fundamental adotar outras medidas. Segundo ele, um exemplo positivo foi a decisão do governo colombiano de proibir o uso de armas a cada dois fins de semana, nas áreas de Medellin, Calí e Bogotá – regiões dominadas pelo cartel da máfia de drogas. “Ficou clara a diferença entre os números registrados antes e depois da medida”, conta o pesquisador.
Síndrome
Ao computar os dados em que 700 pessoas foram analisadas, no final de março, Soares notou que a criminalidade no Rio tem características diferentes de outros locais no mundo, inclusive com efeitosquelembram as síndromes desenvolvidas no pós-guerra civil norte-americano.
Assim como os ex-combatentes, as vítimas de violência vivem em permanente estado de estresse. Em geral, passam a ter dificuldades para dormir e de concentração, além da falta de perspectivas no futuro e incapacidade para amar.
Os que perderam amigos e parentes na guerra do tráfico têm lembranças constantes do que viveram. “Meu irmão teve o rosto baleado. Volta e meia me pego com a imagem dele desfigurado”, conta uma das vítimas, segundo o sociólogo. É comum também que as pessoas mudem por completo os hábitos que tinham antes do crime, deixando de frequentar lugares e modificando horários. “Na prática, eles se tornam prisioneiros”, define Gláucio Soares.
Nem todos desenvolvem esses comportamentos, mas há casos de vítimas que sofrem de obsessões constantes. De acordo com os relatos registrados pela pesquisa, o mais comum é que depressão e medos durem apenas algunsmeses, no máximo poucos anos. “É raro, mas há quem permaneça a vida inteira com todas essas dificuldades”, diz Soares.
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Má fama mundo afora
“Ontem liguei para o meu irmão no Ceará, e ele falou: “Teu bar tá famoso hein?”. Aí, eu falei: “Não quero essa fama, não”. O diálogo, relatado por um dos funcionários de uma lanchonete na esquina da principal entrada da Rocinha, na via Ápia, reflete bem o que os moradores têm vivido nos últimos dias. Na manhã de ontem, havia 13 carros de reportagem parados na entrada da favela.
Entre os jornalistas, havia repórteres dos jornais brasileiros, além de correspondentes europeus e norte-americanos. “Já fiz algumas coberturas assustadoras, como a do carnaval, mas esssa é a pior de todas”, diz a jornalista portuguesa Susana Mota, 26 anos, da TVI.
“Para nós é muito assustador, a gente só assiste a essas coisas quando é enviado para a guerra do Iraque, mas aí já estamos preparados”, afirmou Mota, que mora no Brasil há dois anos e está no Rio desde janeiro.
“Sai, sai, para não aparecer”, ordena Maria de Fátima, 35, a suas duas filhas, de 7 e l0 anos. Questionada sobre o motivo para o temor das lentes, a mãe, dona-de-casa e moradora da favela há 16 anos, explica: “Não é medo não, é para preservar a minha família, que mora lá dentro”.
Mas nem todos têm medo das cârneras fotográficas e de vídeo. Apresentando-se como “Rick Cabeleireiros”, Luiz Carlos Henrique, 40, interrompeu uma entrevista do comandante-geral da PM, Renato Hottz, para cobrar a demora no reforço da segurança do local. Ao ser questionado se tinha motivações eleitorais, respondeu: “O Rick não é político, é polêmico. Ele é a voz da
sociedade”.
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SEM SOSSEGO
As seqüelas deixadas nos sobreviventes da violência
Problemas de concentração
Ausência de perspectivas no futuro
Lembranças constantes do fato
Depressão
Mudanças de comportamento
Alterações de rota
Modificações de horários