Número de desaparecidos se confunde com o de assassinados
O Estado do Rio tem 14,3 milhões de habitantes e uma densidade demográfica de até 1.900 moradores por quilômetro quadrado, mas, nas estatísticas de violência, parece um imenso deserto, onde pessoas somem sem deixar rastro. Uma pesquisa recém-concluída pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (Cesec-Ucam) mostra que o número de pessoas registradas como desaparecidas no estado praticamente dobrou em dez anos, passando de 2.473, em 1993, para 4.800 no ano passado, o que representa um aumento de 94%. No período, foram contabilizados 39 mil desaparecidos, o que corresponde a duas vezes a população de Búzios.
Em dez anos, 76 mil pessoas mortas
A pesquisa do Cesec, feita com base em dados da Polícia Civil, traduz em números o estrago causado pela violência no Estado do Rio ao longo dos últimos dez anos: 76.378 pessoas assassinadas entre 1993 e 2003 (o que significa que uma cidade do tamanho de Maricá foi riscada do mapa), quase 500 mil veículos roubados ou furtados (o que corresponde a cerca de um quarto da frota atual da cidade), 153 mil assaltos a pedestres e 17 mil roubos a residência. O número de vítimas de autos de resistência (mortos supostamente em confronto com a polícia) quadruplicou nos últimos cinco anos, passando de 289, em 1999, para 1.195, em 2003, de acordo com a pesquisa.
— É um dado espantoso — diz Leonarda Musumeci, professora do Instituto de Economia da UFRJ e coordenadora da área de criminalidade e violência do Cesec. — Isso mostra inexistência de políticas de segurança consistentes para redução da violência. A própria polícia contribui para aumentar a violência.
As taxas de homicídios do estado e da capital registraram ligeira queda ano passado em relação a 2002: de 46,8 para 44,5 no estado, e de 45,8 para 43,1 na capital. Mas, segundo a pesquisadora, uma análise dos gráficos mostra que as taxas permanecem praticamente estáveis há cinco anos, depois de um período de queda entre 1994 e 1998:
— Elas se estabilizaram em patamares muito altos, inaceitáveis.
Se as taxas de homicídio estão estacionadas, por que a sensação generalizada de que a violência tem aumentado? A pesquisa do Cesec dá algumas pistas. Leonarda chama a atenção para o crescimento do número de desaparecidos. Segundo ela, o fato pode estar relacionado à guerra do tráfico e ao aumento do número de mortes que sequer são registradas como homicídios pela polícia.
— Quem são esses desaparecidos? — pergunta Leonarda. — Dizer que são crianças, idosos ou adolescentes que fugiram não explica o problema. Provavelmente há muitas pessoas desaparecidas na guerra do tráfico. Suspeita-se que há cemitérios clandestinos em várias partes do Rio.
O violento cotidiano da cidade tem comprovado isso. Foi num cemitério clandestino no alto da Favela da Grota, na Penha, que a polícia encontrou, em junho de 2002, os restos mortais do jornalista Tim Lopes, da Rede Globo. Em agosto do mesmo ano, outro cemitério clandestino foi descoberto no alto do Morro do Fubá, em Madureira: ossadas de pelo menos três vítimas do tráfico foram localizadas.
Uma análise das regiões onde são registrados os casos de desaparecimento reforça a tese de que eles têm forte relação com os assassinatos. De acordo com a pesquisa do Cesec, os registros de desaparecidos são mais freqüentes na 9 Área Integrada de Segurança Pública (Aisp), que inclui Pavuna, Acari, Barros Filho, Irajá, Vila Cosmos, Vicente de Carvalho, Vila da Penha, Cascadura e Madureira. Essa região concentra também o maior número de homicídios na cidade. O estudo revela ainda que, em 2003, o número de pessoas desaparecidas, somado ao de autos de resistência e ao de encontro de cadáveres e ossadas (7.673) superou o total de homicídios dolosos no estado (6.624).
A experiência do Serviço de Descoberta de Paradeiros, que funciona na Delegacia de Homicídios, mostra que a maioria dos desaparecidos é homem e tem entre 18 e 26 anos. O órgão confirma a estreita ligação desses casos com a violência. De acordo com o inspetor Gilvan Ferreira, que há nove anos investiga casos desse tipo, de cada cem desaparecidos, 70 estão relacionados direta ou indiretamente ao tráfico. Destes, 30 acabam sendo localizados, vivos ou mortos, enquanto os outros 40 permanecem ocultos pelo mais absoluto mistério.
— São muito freqüentes os casos de usuários que sobem o morro para comprar drogas e que, por motivos como desentendimentos, rixas ou dívidas com traficantes, acabam sendo mortos — assinala Gilvan.
O levantamento do Cesec mostra também que o número de roubos e furtos de veículos em 2003 (53.473) bateu o recorde dos últimos dez anos, superando os de 2002 (52.145), 1992 (52.121) e 1994 (51.332). De acordo com a pesquisa, o número de roubos (em que há emprego da violência) é maior do que o de furtos de automóveis: 63% contra 37%. Os roubos e furtos de veículos são mais freqüentes nas regiões classificadas pela polícia como 9 Aisp (que inclui os bairros de Pavuna, Acari, Barros Filho, Irajá, Vicente de Carvalho, Vila da Penha e Madureira), 16 Aisp (Complexo do Alemão, Parada de Lucas, Vigário Geral, Penha e Olaria) e 22 Aisp (Bonsucesso, Manguinhos, Maré, Ramos e Benfica). A região é tão violenta que é conhecida como Faixa de Gaza, em alusão ao território disputado por palestinos e israelenses. A pesquisa completa estará disponível a partir de terça-feira no site do Cesec: http://www.cesec.ucam.edu.br.
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O terror do microondas do tráfico
O jornalista Tim Lopes desapareceu em 2 de junho de 2002, na Vila Cruzeiro, quando fazia uma reportagem sobre bailes funk. Ele tinha recebido denúncia de que haveria tráfico de drogas e exploração sexual de menores nos bailes da favela.
Em 9 de junho, o chefe de polícia, Zaqueu Teixeira, informou que Tim havia sido assassinado uma semana antes. Capturado pelos bandidos, o jornalista foi levado até o alto da Favela da Grota, onde foi julgado sumariamente por Elias Maluco – que está preso em Bangu 1 – e seus cúmplices, torturado e executado.
Os restos mortais de Tim foram encontrados pela polícia em 11 de junho, durante escavações no alto da Grota. Em meio a relatos chocantes, descobriu-se que o lugar, conhecido como microondas, era usados pelos bandidos para queimar os corpos dos inimigos.
A identificação só foi confirmada dias depois, quando saiu o resultado do exame de DNA.
Segundo o inspetor de polícia Gilvan Ferreira, do Serviço de Descoberta de Paradeiros, este é um caso típico de desaparecimento no Rio.
– O Tim Lopes estava desaparecido, mas só foi possível localizar o corpo, que estava num cemitério clandestino, devido a informações. Não fosse isso, ele faria parte da estatística dos desaparecidos. Quem são aquelas outras pessoas encontradas junto com Tim Lopes?
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