Inocência violentada

Crianças e adolescentes são maioria das vítimas de estupros e atentados ao pudor

A aproximação começou com a promessa de brinquedos. Em pouco tempo, X., de 9 anos, já freqüentava a casa de um vizinho, de 66 anos, em Jacarepaguá, onde assistia a filmes e tinha várias bonecas para se divertir. Um dia, a menina sofreu um forte sangramento e um exame comprovou que ela tinha sido estuprada. O drama da família, registrado na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), não terminou aí. A polícia descobriu que as outras irmãs de X., de 7 e 8 anos, tinham sido vítimas de atentado violento ao pudor cometido pelo mesmo vizinho.

Um levantamento feito a partir dos registros policiais revelou que 65% dos casos de atentado violento ao pudor (qualquer tipo de abuso sexual), ocorridos entre 2001 e 2003, foram contra crianças que tinham entre 5 e 12 anos, enquanto que o estupro (violência sexual apenas contra a mulher) correspondeu a 16,3% para a mesma faixa etária. Os dados fazem parte de uma pesquisa sobre crimes sexuais realizada pelo Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero/UFRJ e pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania/Cândido Mendes. As pesquisadoras analisaram 3.608 registros de estupros e 4.947 de atentados violento ao pudor (73,9% dos casos foram contra vítimas do sexo feminino). Segundo a pesquisa, 31,8% das vítimas de estupro são adolescentes (de 13 a 17 anos) e, ao todo, 50,9% são menores de 18 anos.

Maioria dos crimes é cometida em casa

O estudo mostra que 60% dos atentados ao pudor ocorreram dentro de casa, a maioria no período da tarde, e em 72% das vezes foram cometidos por parentes, vizinhos ou algum conhecido da família. Os casos de estupro têm características diferentes. A maioria das vítimas foi atacada em áreas públicas (62%) à noite ou de madrugada (62,3%) e 48% dos agressores eram conhecidos das vítimas. A pesquisa levantou também as regiões administrativas que tiveram proporcionalmente o maior número de estupros e atentados ao pudor.

A região da Barra encabeça a estatística com 8,5 estupros por dez mil habitantes, seguida de Rio Comprido e Santa Cruz. Os atentados ao pudor ocorreram mais em São Cristóvão, Santa Cruz e Barra. Mas esses dados precisam ser mais bem analisados, segundo as pesquisadoras. De acordo com elas, em regiões que englobam favelas como Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré não foram registrados estupros, o que levou a Barra a encabeçar a lista. As regiões da Rocinha e da Cidade de Deus apresentaram apenas 7 estupros em três anos.

– Temos que levar em conta que nessas regiões de favela há forte pressão de traficantes. Isso pode ter colaborado para que mulheres não registrassem estupros – diz a socióloga Aparecida Fonseca Moraes.

O cruzamento de dados da pesquisa revelou a faixa etária dos criminosos. Em relação ao atentado violento ao pudor, 49% dos agressores tinham entre 25 e 44 anos. Nos casos de estupro, a maior parte dos autores tinha também entre 25 e 44 anos (58%).

Para a socióloga Bárbara Soares, a pesquisa pode ajudar a polícia e as famílias a prevenirem esses crimes, já que mostra com mais detalhes a dinâmica e o perfil de vítimas e autores. Ela chama a atenção para a impunidade dos crimes de violência sexual contra as mulheres. Mesmo nos casos em que os agressores foram identificados, menos de 10% foram presos e indiciados.

– A impunidade é um convite à violência. O número de pessoas presas e indiciadas ainda é muito baixo e, certamente, é um dos fatores que colaboram para que esses crimes continuem ocorrendo – diz Bárbara.

Segundo a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), somente cerca de 10% a 20% dos casos de abuso contra crianças são registrados. O secretário executivo da Abrapia, Lauro Monteiro Filho, diz que a polícia e a Justiça pouco avançaram na punição dos autores de abuso contra crianças. Ele lembra do caso de um menino que foi abusado pelo pai e somente sete anos depois os psicólogos da Abrapia foram chamados para prestar depoimento na polícia, já que tinham dado atendimento à criança.

– Avançamos muito na discussão desses crimes, mas infelizmente ainda é muito baixo o número de pessoas condenadas por praticar abusos contra crianças.

Lauro Monteiro acrescenta que há quase duas décadas era tabu falar de atentado violento ao pudor contra meninas; hoje, segundo ele, o problema é o abuso contra meninos. Para ele, há um grande número de subnotificações de casos envolvendo garotos que sofrem abusos dentro de casa por algum parente ou vizinho. O coordenador do SOS Mulher, o ginecologista Moisés Rechtman, por sua vez, alerta para o grande número de mulheres que não procuram atendimento médico após os estupros. O ginecologista explica que após 72 horas do estupro é possível evitar gravidez indesejada, doenças venéreas e Aids:

– Para isso, as mulheres precisam ir aos centros de referência, como maternidades públicas, e se informarem o mais rapidamente possível após o estupro. Hoje, somente 10% dessas mulheres procuram esses centros.

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