Brasileiras são vítimas indiretas das armas de fogo
Bárbara Musumeci Soares é socióloga, mestre em antropologia social, doutora em sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e autora do livro Mulheres Invisíveis. Coordenadora da área de Segurança Pública e Gênero do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, sua especialidade é a violência doméstica e de gênero.
Aproveitando os 16 dias de mobilização pelo fim da violência contra as mulheres, comemorados entre 25 de novembro e 10 de dezembro em todo o mundo, Bárbara fez uma pequena análise de como as armas de fogo impactam a vida das brasileiras. Para ela, embora não vivamos uma situação de conflito armado, as mortes por armas de fogo no Brasil não ficam atrás das estatísticas apresentadas por países em guerra. O número de mulheres que morrem por armas de fogo é muito menor do que de homens. Mesmo assim, as mulheres sofrem de forma indireta com a violência armada pois sofrem o impacto da perda e têm que assumir outras tarefas, afirma.
De acordo com dados do Datasus usados em uma pesquisa feita pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser) em 2002, o percentual de utilização de arma de fogo nos homicídios cometidos contra mulheres é de 42,4%.
Ainda segundo o Iser, mais da metade das mulheres vítimas (53%) de homicídios e tentativas de homicídios com arma de fogo conheciam seu agressor e mais de um terço (37%) dessas mulheres tinham uma relação amorosa com seu agressor. (Iser, 2005: com dados das Delegacias Legais do Rio de Janeiro entre 1999 e 2005).
Está em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara Federal, o Projeto de Lei 4559/04, que cria mecanismos para inibir a violência doméstica contra a mulher. A proposta institui, entre outras medidas, juizados especializados nessa área. Se aprovado na CCJ, o projeto vai para votação em plenário.
Segundo o relatório da Anistia Internacional Impacto das armas de fogo na vida das mulheres, lançado em maio deste ano, as mulheres são vítimas duas vezes das armas de fogo. Além de serem mortas pelas armas, ainda sofrem a perda de parentes nas guerras. Como acontece esse impacto na vida das brasileiras?
O número de mortes de mulheres por arma de fogo no Brasil é muito inferior ao de homens. O impacto indireto sobre elas é muito maior do que o direto. Existem duas formas de impacto indireto: a perda dos maridos, dos filhos e dos parentes e a vivência do medo da arma.
Mesmo que não esteja vivendo uma situação de conflito, o país tem números, pelo menos em alguns extratos sociais, algumas faixas etárias e em algumas cidades que correspondem a números de países em guerra. Esse já é um impacto sensível nas mulheres. É claro que é diferente de uma situação de guerra em que toda a sociedade se desestruturou e está se reestruturando ao mesmo tempo.
No caso brasileiro, muitas mulheres perdem filhos, maridos e parentes e têm que assumir tarefas extras além de viver o impacto da perda. O Cesec tem uma pesquisa sobre as vítimas ocultas da violência coordenada pelo Gláucio Ary Soares que aborda a desordem do estresse pós-traumático. Ele fala do impacto que essa desordem tem na vida dessas pessoas.
E qual é a influência desse segundo tipo de impacto indireto das armas na vida dessas mulheres?
Sobre o medo das armas de fogo que as mulheres sofrem, isso não é mensurável ainda. Nós tentamos medir isso na pesquisa que fizemos nas delegacias da mulher em outubro deste ano, pouco antes do referendo. Mas teria que fazer uma pesquisa mais extensa. [Mulheres vítimas de agressões que iam denunciar crimes nas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deams) do Rio de Janeiro responderam a um questionário com uma série de perguntas sobre as violências que sofriam. Das 615 mulheres que responderam as questões, 86% disseram que conheciam o agressor e 68% disseram que foram ameaçadas com uma arma de fogo]. Os números da pesquisa mostram que a presença da arma é um fator de dominação, de sujeição, de intimidação. Isso está muito associado à situação de violência doméstica.
As vítimas de violência doméstica percebem a arma como um objeto de intimidação?
Não temos dados, teria que se fazer uma pesquisa mais específica para perceber o quanto, nos casos de violência doméstica, a própria vítima reconhece a arma de fogo como um fator intimidatório. Tanto no sentido de vulnerabilizar mais a mulher em relação à violência, quanto de impedi-la de pedir ajuda, de denunciar. A arma acaba sendo mais um elemento de apriosionamento da mulher na própria situação de violência.
A arma funciona como elemento intimidatório até quando ela não está presente. Para você ter uma idéia, nós fizemos uma pergunta para as mulheres cujos denunciados tinham uma arma de fogo e muitas mulheres que tinham dito que eles não tinham uma arma de fogo disseram que eram ameaçadas pela arma de fogo. Começamos a tentar testar várias possibilidades. Uma delas é de que o agressor ameaçava comprar uma arma de fogo. Ou seja, usava a existência da arma como ameaça mesmo que ele não a tivesse. Muitas mulheres nem sabiam se o companheiro tinha uma arma de fogo.
Você acha que a arma de fogo potencializa a violência doméstica?
A maior parte dos homicídios de mulher é praticada com armas de fogo. Eu não sei se a arma de fogo potencializa quantitativamente a violência, mas ela a torna mais letal, pois a mulher tem muito menos chance de se defender quando a agressão é com uma arma de fogo.
A violência não é só a agressão física, ela é a própria situação de dominação. A violência física é um dos instrumentos que o indivíduo usa para dominar outra pessoa e a arma é mais um deles. A agressão verbal, a humilhação, a agressão sexual são formas de sujeição da mulher, de manter um controle total. Nesse sentido a gente pode afirmar que a arma de fogo potencializa a violência doméstica além de aumentar o risco de um fim fatal.
Quando ocorre um homicídio doméstico, já existe uma história de violência. Normalmente o homem mata a mulher quando ela está tentando sair da relação. Ele usa como último recurso matar. E ele mata no desespero, pois é a única forma de controlar aquela pessoa. A arma de fogo precipita, torna mais breve esse desfecho. Mesmo que a intenção de matar independa de o sujeito ter uma arma de fogo ou não nessas circunstâncias, a arma minimiza a possibilidade da mulher se defender de um ataque.
Estamos acostumados a ver as mulheres somente como vítimas das armas de fogo. Em que situação elas são também agressoras?
Os homens matam as suas mulheres quando são agressores. Quando as mulheres matam é porque elas são as vítimas, matam sua situação de autodefesa. Se existe uma arma, essa mulher pode se tornar uma homicida ao invés de tentar outra saída.
A mulher teria um papel fundamental nas campanhas pelo controle de armas?
É importante as mulheres participarem de qualquer campanha. Nesse caso, é importante não porque ela é mulher, mas porque ela vai contribuir com alguns pontos de vista que podem sensibilizar outras mulheres.
Por outro lado, a arma de fogo é um potencializador da violência doméstica, mas não necessariamente é vivido dessa forma por elas conscientemente. Ela pode ter um papel ativo no controle de armas não porque ela é vítima real ou potencial da arma de fogo. Quando ela toma a iniciativa de tirar de casa uma arma de fogo porque acha que é um instrumento que representa risco, ela está assumindo esse papel.
As mulheres são a maioria do eleitorado brasileiro. A vitória do não significa que elas também votaram contra a proibição do comércio de armas. Por que, na sua opinião, mesmo sendo vítimas diretas e indiretas das armas de fogo, as mulheres votaram não?
Na campanha pela proibição do comércio de armas não apareceu nitidamente o diferencial feminino em termos de discurso. Não chegou a haver um discurso feminino que fosse mais mobilizador das mulheres. Houve um foco nas mulheres sobre o quanto elas sofriam por causa das armas de fogo direta e indiretamente, mas o peso da voz feminina não chegou a se fazer presente. Não existiu um discurso de uma mulher para outras mulheres que fizesse claramente essa conexão.
O fato mais óbvio é que as mulheres são muito menos vítimas das armas de fogo do que os homens, o que dificultou a absorção. É muito difícil construir um discurso sobre algo que não é visível.
Além disso, o discurso da vitimização feminina está muito desgastado. Há 30 anos que os movimentos femininos estão falando que a mulher é vítima. A mulher sofre a mesma violência que o homem nas ruas e esse medo é coletivo, mas o medo que ela sofre dentro de casa não causa medo coletivo, é um medo individual, é um problema do outro.
Qual influência você acha que o Estatuto do Desarmamento brasileiro terá sobre o número de mortes de mulheres por armas de fogo?
A implementação do estatuto não vai diminuir a violência doméstica, mas a tendência é que haja um impacto sobre o número de homicídios domésticos principalmente nos locais onde a principal fonte de armas não seja o contrabando – porque a gente não está falando de agressores que sejam ao mesmo tempo criminosos.
Os riscos tanto de ferimento, como de morte como de ameaças por intimidação por arma podem diminuir e isso causa um impacto – embora a violência doméstica prescinda de armas para acontecer.
Mas só a lei é o suficiente?
O que se diz na área de violência doméstica é que nenhum elemento sozinho é capaz de resolver ou até mesmo reduzir o problema. Toda contribuição tem que vir associada a outras. A melhor intervenção que se pode fazer é oferecer recursos para que a mulher os utilize quando estiver preparada, pois isso depende da dinâmica da vida de cada mulher.
Não adianta querermos que ela obedeça à dinâmica que achamos ser apropriada. O ritmo é individual. A única forma de a sociedade não se omitir como vem se omitindo até hoje e ao mesmo tempo não invadir, não interferir e não reproduzir a violência, é oferecer recursos a essas mulheres e passar a informação. É importante que uma coisa esteja articulada à outra. Quem está empenhado em ajudar uma mulher que esteja vivendo uma situação de violência, tem que saber que pode recorrer ao estatuto. A lei prevê que, para registrar uma arma, o indivíduo não pode ter antecedentes criminais. Se a lei funciona, é mais uma ferramenta.