Afinal, por que tanto menino entra para o tráfico? E como alguns conseguem sair? Essas são algumas da questões enfrentadas no estudo “Meninos do Rio: jovens, violência armada e polícia nas favelas cariocas” (PDF, 365 kb), do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania. Para respondê-las, a pesquisadora Silvia Ramos e equipe colheram 104 depoimentos de estudantes, traficantes, ex-traficantes, milicianos, mães, líderes comunitários, assistentes sociais. O resultado joga luz sobre um fenômeno bastante complexo — o ingresso na vida do crime —, que à luz das análises socioeconômicas costuma ser simplificado e resumido à questão financeira.
A questão financeira existe, evidente. Mas o estudo indica que isso nem sempre é determinante. Para começar, diversas pesquisas — esta, inclusive — apontam certa “crise do tráfico”. A ponto de algumas “bocas” fecharem, por falta de clientela. Razões para tanto podem ser procuradas na expansão do consumo do ecstasy, traficado no asfalto, e na própria violência de criminosos e policiais, que teriam afastado o consumidor. Leia alguns trechos de depoimentos a propósito da baixa nos negócios da droga:
“ Tem favela tão pobre que nem a milícia quer !”
“Tá tão ruim que os fogueteiros vivem pedindo comida. Vão lá em casa, mexem nas panelas: ‘pô, tia, não tem um rango, não? Tô cheio de fome’”
“Eu trabalhando no sinal ganho mais dinheiro do que vagabundo que trabalha no morro”
Se a questão financeira não explica sozinha o ingresso no crime, então o quê? “É claro que em muitos casos adolescentes vão para o tráfico (ou as milícias) em busca de dinheiro, alternativa profissional, para fugir de famílias violentas, para escapar de pais ou mães alcoolizados e degradados, ou por outros motivos socioeconômicos ‘clássicos’”, escreve a autora. “Mas é importante perceber que em muitos casos as trajetórias de vida não correspondem a essas razões mais óbvias ou frequentes.” Vamos a mais alguns depoimentos:
De um ex-traficante: “ Ah, sei lá porque entrei. Poder, eu acho. Ninguém ia tirar contigo (…) nem era admiração pelos caras, era pelas armas ”
De um traficante: “ Eu acredito que eu entrei por safadeza. Nem sei explicar… minha mãe, pô, criou sete filhos sozinha mas nunca deixou faltar nada em casa… Amizade, todas eram envolvidas também ”
De uma mãe, cujo filho foi morto em operação policial: “ É a idade, é empolgação, é adrenalina, é um querer de um poder ”
De uma assistente social: “ Eu sei de meninos que praticamente quase nem ganham, entendeu? Mas está ali, o negócio deles é estar ali na esquina, estar ali com o fuzil ”
De outra assistente social: “ É como o cara que entra no mar prá pegar aquela onda que vem grandona, ele quer estar lá naquela onda. Uma porção de gente está aqui fora dizendo ‘Deus me livre, entrar naquele mar’. Mas ele tem aquela coragem, aquele desejo e vai. Eu acho que é a mesma coisa ir pro tráfico ”
Uma grande surpresa da pesquisa foram os muitos depoimentos que relacionam “virar bandido” e “usar armas” com “conseguir meninas” e “ser olhado, reconhecido, desejado”. É o fuzil usado para atrair beldades do morro e do asfalto — as chamadas Maria Fuzil. O fenômeno é tal que a pesquisa colheu o relato de gente que pede emprestado o fuzil de um amigo traficante só para dar uma circulada pelo baile funk. Tudo para impressionar. E Maria Fuzil ganha o que com isso? Mais alguns depoimentos:
“ Dinheiro. Também ela tem um contato, ninguém rouba ela na rua. Elas tá na rua foi roubada, vem aqui dentro. O cara ainda toma uns tapa ”
“ As donas do pedaço cruzam o salão de ponta a ponta, ninguém pode esbarrar nelas ”
“ Muitas vezes os traficantes aparecem com umas menininhas da comunidade que todo mundo achava muito sem graça, magrinha, sem corpo, mas depois que começam a desfilar com os traficantes, as meninas parece que ganham corpo e o pessoal começa a pensar: ‘pô, olha o que eu perdi ”
O relatório (que pode ser baixado aqui, em PDF, 365 kb) segue analisando possíves efeitos e causas da dinâmica do tráfico, passando pela questão do território, da violência policial, das milícias, da chegada do crack, e encerra com uma série de conclusões e recomendações, entre as quais:
>> “Uma parte de defensores históricos do Estatuto da Criança e do Adolescente tende a pensar nos adolescentes exclusivamente como ‘vítimas’ e ‘portadores de direitos’, e os agentes de segurança e justiça criminal tendem a pensar nos adolescentes apenas como ‘problemas’, numa construção que os criminaliza, especialmente se forem pobres e viverem nas favelas. É necessário encontrar um ponto de articulação de olhares, metas, programas e compromissos que seja capaz de dialogar com os diversos campos, o que tem sido raro no Brasil.”
>> “Temos que nos preparar para produzir opções e alternativas para jovens com baixa escolaridade e que tiveram experiências em grupos criminais, mas que desejam sair do ambiente do crime e ingressar no mundo do empregoNão são apenas “os traficantes” de um lado e os “jovens inocentes” de outro. Há complexas relações entre uns e outros e muitas vezes bastante instáveis e mutantes. Temos de nos preparar para interferir nesses contextos, conhecendo melhor essas dinâmicas e ouvindo os jovens, estejam eles em que ponto estiverem da cadeia que engendra mortes diariamente.”
>> “Território é a chave, às vezes paradoxal, que tem que ser afirmada, valorizada (ter orgulho de ser de tal favela; querer representar a comunidade tal, sentir alegria por pertencer e ’ser’ de tal lugar) e ao mesmo tempo superada, olhada pela distância que apenas a saída e a circulação por outros territórios conseguem produzir.”
>> “É necessário mudar esse quadro e chamar as polícias para o diálogo, estabelecer metas conjuntas e estimular iniciativas do tipo ‘Juventude e Polícia’ (como a desenvolvida pelo Grupo Cultural AfroReggae com a Polícia Militar de Minas Gerais e mais recentemente no Rio, através do projeto ‘Papo de Responsa’).”