Julita Lemgruber a Marie Claire Online: “Vivemos em um sistema penitenciário medieval e ilegal, divorciado da legislação do país”

Julita Lemgruber, ex-diretora geral do sistema penitenciário do Rio de Janeiro, defende como medida emergencial a revisão da situação processual dos presos do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão: “Muitos ali estão presos ilegalmente”

O caos deflagrado no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, na região metropolitana da capital São Luís, no Maranhão, trouxe à tona um problema colocado para debaixo do tapete: o precário sistema prisional brasileiro. Com a divulgação de um vídeo mostrando presos decapitados, denúncias de tortura, superlotação, mais de 62 mortes de detentos desde o ano passado, e ordens de ataques a civis vindas de dentro do presídio, a pergunta que se faz é: qual a saída para o sistema carcerário do país, o quarto maior do mundo?

Marie Claire conversou com Julita Lemgruber, ex-diretora geral do sistema penitenciário do Rio de Janeiro de 1991 a 1994, atual coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes e autora do livro “A Dona das Chaves”. Julita defende a revisão da situação dos presos brasileiros como medida urgente, não apenas para o caso do Maranhão, mas também como saída para todos os presídios do país. “A ideia de que se coloca as pessoas lá dentro e joga a chave fora não é bem assim”. Confira a entrevista.

Marie Claire Online – O caso de Pedrinhas é o exemplo mais forte e recente do problemático sistema carcerário do país?

Julita Lemgruber – Sim. Sempre que acontece alguma tragédia, todos acordam para a realidade do sistema penitenciário, não só as autoridades, mas a população também. Infelizmente, a trágica realidade dele parece não chamar a atenção das pessoas. Temos a quarta população prisional do mundo, com meio milhão de presos, falta espaço para praticamente metade deste número e os detentos cumprem pena em condições cruéis, desumanas e degradantes. Há situações absolutamente inaceitáveis para um país que é a sexta economia no mundo. Em algumas unidades prisionais de São Paulo, em pleno século XXI as mulheres usam miolo de pão como absorvente. É dramático, mas só toca corações e mentes quando transborda para fora dos muros. Quando foi divulgado o episódio trágico de decapitação de presos, os governantes do Maranhão insistiram que a violência estava contida dentro dos muros. Dois dias depois, a realidade fez com que eles tivessem que se recolher porque, de dentro da prisão, saíram ordens para queimar ônibus, atacar postos policiais e pessoas foram vitimas desta violência. É uma ilusão achar que vai tratar seres humanos como animais violentos e que não vai ter nenhum desdobramento. Precisamos lembrar que essas pessoas vão sair revoltadas e dispostas a cobrar o que lhes foi roubado em relação a condições mínimas de sobrevivência dentro dos muros.

Marie Claire Online – Desde quando o sistema se encontra neste estado?

JL – As prisões já nasceram falidas. Ele é caótico há décadas. Em 1995, havia um projeto do governo Fernando Henrique Cardoso para investir no sistema prisional para zerar o déficit de vagas. Nunca foi feito isso em nenhum governo. Não houve nenhuma preocupação de criação de vagas para desafogar, a curto prazo, o sistema penitenciário. O que não se leva em conta é que é preciso olhá-lo de forma sistêmica porque ele é uma das engrenagens da justiça criminal do país. E funciona muito mal, desde a polícia até o Judiciário. Há milhares de presos provisórios, quase 200 mil estão aguardando julgamento, e sabemos que no Rio de Janeiro cerca de 50% estão presos ilegalmente, por exemplo. Em outra ponta, os já condenados, que teriam algum tipo de benefício, como o livramento condicional, também se contam aos milhares. Há um problema na entrada e na saída gravíssimo. Enquanto não se resolver isso, não adianta ficar construindo mais cadeias. É um buraco sem fundo, você vai encher as cadeias, mas não vai resolver o problema sistêmico.

Marie Claire Online – Qual seria a saída a curto prazo?

JL – A curto prazo é levar a sério o que o Conselho Nacional de Justiça já empreendeu quando o ministro Gilmar Mendes era presidente. Fazer mutirões muito agressivos em vários Estados para resolver o problema dos milhares de presos ilegalmente. Isso deveria ser feito como medida emergencial. Infelizmente, nestas últimas gestões do Supremo, inclusive hoje sob a presidência de Joaquim Barbosa, o Conselho Nacional de Justiça é uma pálida lembrança do que já foi no passado. É preciso recuperar essa função importante de fazer o controle externo dos tribunais de justiça. Há uma morosidade muito grande de funcionamento destes órgãos.

O CASO DO COMPLEXO PENITENCIÁRIO DE PEDRINHAS É O EXEMPLO MAIS RECENTE DO PROBLEMÁTICO SISTEMA CARCERÁRIO DO PAÍS (FOTO: ZÉ ROBERTO/AGÊNCIA O GLOBO)

Marie Claire Online – No caso especifico de Pedrinhas, haveria alguma outra medida que conseguiria resolver de imediato o problema?

JL – A medida urgente é ver a situação processual daquelas pessoas que estão em Pedrinhas porque certamente muitos ali estão presos ilegalmente. Isso já desafogaria imediatamente. A estratégia de transferir presos perigosos é uma grande hipocrisia. Cada sistema penitenciário estadual tem que se instrumentalizar para lidar com seus presos perigosos. Essa ilusão de que vai sempre transferir o problema tem pernas curtas.

Marie Claire Online – Na sua opinião, quais seriam os prós e contras da intervenção federal em Pedrinhas, que a Procuradoria-Geral da República estaria inclinada a solicitar?

JL – Nem vou discutir prós e contras porque não acredito que essa seja uma medida que surta efeito. A mais emergencial é rever a situação dos presos para desafogar. Eles falam em construir muitos presídios, mas não se cria uma unidade prisional do dia para a noite. Isso toma tempo. Se você tem aquele número de presos e tem um problema de superlotação grave, há de se rever emergencialmente a situação processual deles. A superlotação e as condições carcerárias desumanas estão por trás desta violência. Não se pode esperar nada diferente de um caldeirão em ebulição quando se submete pessoas a essas condições de sobrevivência, em um regime de superlotação absurdo.

Marie Claire Online – Um vídeo com imagens de decapitação de presos no presídio de Pedrinhas se tornou público e chocou o país. Essa realidade é uma surpresa para você?

JL – O que surpreende é esse vídeo se tornar público. Presos serem decapitados é algo que já aconteceu também em outros Estados. Em São Paulo, por exemplo, tem um grupo dissidente do PCC chamado Cerol Fino. Ao que tudo indica, eles também estão usando de estratégias superviolentas. Essa é a questão que perturba. É preciso acontecer uma tragédia documentada para as pessoas se darem conta do absurdo. Violências deste tipo acontecem rotineiramente por todo o Brasil. O presídio Central, de Porto Alegre, também está denunciado como um local de graves violações dos direitos dos presos. Mesmo assim, nada acontece. Essa ideia de que se joga as pessoas lá dentro e joga a chave fora não é bem assim…

Marie Claire Online – A situação caótica a que se chegou no Maranhão mostra um despreparo da governadora do Estado, Roseana Sarney?

JL – O que mais me deixou chocada em relação à governadora do Maranhão é ela se mostrar surpresa com o que estava acontecendo. A família Sarney governa aquele Estado há tanto tempo e desconhecia a realidade brutal sob sua responsabilidade? Isso chega às raias da hipocrisia.

Marie Claire Online – A declaração do senador Lobão Filho (PMDB-MA), que acompanhou a visita que a Comissão de Direitos Humanos do Senado fez na última segunda (13) ao presídio de Pedrinhas, mostra um pensamento de uma parcela da sociedade brasileira sobre o tema. Para ele, é um equívoco priorizar direitos humanos dos presos. Como a senhora analisa uma afirmação dessa?

JL – Essas pessoas ainda não se deram conta de que, enquanto o direito de todos não for respeitado, não viveremos em uma democracia verdadeira. Ter um Estado democrático de direito implica na absoluta observância dos direitos de todos, até dos criminosos. A polícia no Brasil é campeã de violência letal. Há inúmeros trabalhos que mostram essa trágica letalidade da ação policial. Alguém se mobiliza? Isso emociona corações e mentes? Não porque quem morre é o pobre e favelado, quem não tem voz ou poder nesta sociedade.

Marie Claire Online – Cada vez que é pensada uma reforma e mais investimentos no sistema carcerário brasileiro, grande parte da população se manifesta contrária a isso com argumentos de que “bandido tem que ficar na cadeia e sofrer”. A senhora sentia esse tipo de comportamento social no período em que comandou o sistema prisional do Rio de Janeiro? Qual a sua opinião sobre isso?

JL – Realmente o sistema penitenciário não é prioridade e nem nunca foi. Só chama a atenção quando tragédias como essa acontecem. Sempre quando há projetos dos governantes na área da segurança pública, o sistema penitenciário é esquecido. O que temos que lembrar é que o preso no Brasil não custa barato. Hoje, os custos variam entre 2 e 3 mil reais por mês. Estamos investindo em nossa própria insegurança porque essas pessoas estão saindo diplomadas. Você inunda cadeias com pessoas que cometeram crimes sem violência, sem gravidade, e que vão sair de lá muito pior. Nunca acreditei que estamos lá para corrigir alguém. Acredito que é obrigação do dirigente tornar a vida menos cruel e desumana, proporcionando o que a lei determina. Por exemplo, ela determina que o preso que não completou o primeiro grau tenha acesso ao estudo dentro da cadeia. No entanto, menos de 70% dos presos no Brasil completou o primeiro grau e nem 20% deles estuda. A legislação também diz que o preso é obrigado a trabalhar e menos de 20% deles faz isso. Temos uma legislação que é descumprida 365 dias no ano. Você priva alguém da liberdade, mas joga essa pessoa no lugar em que a ilegalidade impera 24 horas por dia. Com que autoridade o Estado está tirando a liberdade dessas pessoas sem nem ao menos cuidar para que a lei possa ser praticada dentro dessas unidades?

A GOVERNADORA ROSEANA SARNEY SE REUNIU COM O MINISTRO DA JUSTIÇA JOSÉ EDUARDO CARDOZO PARA FALAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL MARANHENSE. ELA AFIRMOU “ESTAR CHOCADA” COM A VIOLÊNCIA NO COMPLEXO DE PEDRINHAS, COM 62 MORTOS DESDE O ANO PASSADO (FOTO: HANS MANTEUFFEUL/AGÊNCIA O GLOBO)

Marie Claire Online – A senhora comandou entre 1991 e 1994 o sistema prisional do Rio de Janeiro, considerado um dos mais violentos do país. O que mais a chocou durante esse tempo?

JL – O que mais me marcou foi a possibilidade de, através de um trabalho sério, reduzir a violência dentro dos muros. Durante todo o período em que dirigi o sistema penitenciário do Rio de Janeiro houve apenas oito mortes. No período anterior, foram 80. Não foi um trabalho fácil. Convencer os guardas a usar a legislação para punir o preso não é fácil. Você só consegue controlar a violência dentro dos muros quando não se tem níveis de superlotação insuportáveis, quando se cumpre minimamente com o que a legislação determina e quando se consegue mostrar, para presos e guardas, que um ambiente com menos violência é importante para os dois lados. Puni a violência dos guardas e a dos presos. Fui considerada uma diretora muito dura, mas acabei respeitada pelos dois lados. No último dia da minha administração, um guarda considerado muito violento me procurou com lágrimas nos olhos e disse “a senhora me convenceu que é importante trabalhar em uma ambiente em que a violência é controlada”. Consegui mostrar para os dois lados que é possível conviver quando se respeita os direitos de guardas e de presos. Claro que você não consegue nunca cumprir com tudo o que a legislação penal determina, mas quando ambos os lados percebem que você age com justiça, é meio caminho andado.

Marie Claire Online – Como você analisa a situação hoje?

JL – O sistema penitenciário vive uma situação limite porque tivemos uma explosão de número de presos. A população penitenciária no Brasil triplicou nos últimos 15 anos. Não se vê isso em nenhum outro país. O número de presos por tráfico de drogas triplicou nos últimos cinco anos. Quando você vai ver o perfil de quem está sendo preso, percebe-se que é aquele pequeno traficante que tem 20 ou 30 pessoas para ocupar o lugar dele. O perfil do preso por tráfico hoje está longe de preencher aquela imagem simbólica que a população tem do “traficante armado até os dentes, perigoso e violento”. Isso não é a realidade das drogas do Brasil, com algumas exceções.

Marie Claire Online – Quais seriam as ações necessárias a se tomar nos presídios brasileiros para desarmar a bomba relógio prestes a explodir em várias outras unidades do país, como o Aníbal Bruno, em Pernambuco, e o Central, de Porto Alegre?

JL – É fazer a lei valer. O Brasil é um país que tem legislação de primeiro mundo em muitas áreas, só que ela continua letra morta e não é implementada. Como dizemos, “leis que pegam e leis que não pegam”. A de execução penal, que é de 1984, por exemplo, não pegou. O que temos que fazer? Temos que respeitar nossas leis e fazê-las valer. Se essa, por exemplo, tivesse saído do papel, não teríamos a situação de hoje. Vivemos um sistema penitenciário medieval e ilegal, totalmente divorciado da legislação do país.

Visualizar matéria

versao para impressão

Mais Entrevistas