A situação do sistema prisional no Brasil pode ser considerada uma calamidade. A população carcerária convive com o desrespeito às condições mínimas de dignidade humana. Um submundo do submundo. Para agravar o quadro, a polícia no país mata 5 pessoas por dia.
Parceira de longa data de Luiz Eduardo Soares, a cientista social Julita Lemgruber que já dirigiu o sistema prisional do Rio de Janeiro durante o segundo governo Brizola e foi ouvidora de polícia durante o primeiro ano do governo Garotinho, hoje coordena o Centro de Estudos de Cidadania na Universidade Candido Mendes. Sua luta é pelo cumprimento da lei. Julita afirma que, na área das prisões, temos uma Lei de Execução Penal considerada exemplar, mas que está longe de sair do papel.
O Brasil tem a quarta população carcerária do mundo, caminhando a largos passos para ser a terceira e um dos grandes problemas é a superlotação que, em alguns estados, chega a níveis tão desesperadores que funciona como combustível para a violência interna que explode em rebeliões. Casos recentes como o de Pedrinhas, no Maranhão e de Cascavel, no Paraná, são exemplos. E, o que é pior ainda, grande parte dos presos está encarcerada ilegalmente.
Como bandeiras, hoje, a professora Julita defende que “se as leis do país fossem respeitadas, não haveria superlotação porque, pelo menos, metade dos presos estão presos ilegalmente, seja como presos provisórios, seja como presos que já deveriam ter sido beneficiados, por exemplo, com a liberdade condicional”.
A outra bandeira que Julita defende hoje é a legalização das drogas, com regulação bastante séria e criteriosa porque “A guerra às drogas provoca muito mais violência do que a violência que supostamente as drogas, hoje ilícitas, podem causar.”
Julita declara seu voto por Dilma e Lindberg. “Não resta a menor dúvida de que os 12 anos de governo do PT tiveram um impacto enorme na redução da pobreza e da desigualdade nesse país.”
No entanto, ela diz votar pela reeleição de Dilma contrariada pelo pouco caso de nossa presidente com a segurança pública em seu governo e os equívocos na área de política de drogas.
“Uma mulher que foi presa e torturada não deu qualquer atenção aos problemas de violência no país (onde acontecem quase 60 mil homicídios anualmente) e nem mesmo ao sistema penitenciário. No caso das mulheres presas, por exemplo, hoje, em 2014, ainda se encontram unidades prisionais onde mulheres usam miolo de pão como absorvente higiênico.”
Como resolver o problema do crime organizado no Brasil?
Depende do que se está falando. Na área das drogas, por exemplo, acredito que o único caminho seja a legalização, com regulação. Precisamos lembrar, sempre, que drogas sempre foram consumidas – seja para fins de prazer, fins medicinais ou religiosos. Faz parte da história da humanidade e isto não vai mudar. Então pensar um mundo sem drogas é uma ilusão e vamos ter que conviver com um mundo em que as pessoas vão usar drogas. Hoje a droga que mais causa danos é o álcool, que é uma droga licita. A verdade é que a maior parte das pessoas que usa drogas, e estou falando de todas as drogas, lícitas e ilícitas, não abusa das drogas. Nós convivemos no dia a dia com pessoas que usam drogas e trabalham, estudam, se divertem e não são usuárias problemáticas de drogas. E, para aquelas que fazem uso problemático de drogas, que abusam das drogas, o que precisamos é investir em programas sérios de redução de danos o que não quer dizer internação compulsória. Por outro lado, há programas de prevenção que funcionam muito bem – o Brasil reduziu, nos últimos 15 a 20 anos em 65% o número de pessoas que fumavam cigarros e não se recorreu à proibição.
Você atribui a violência nas favelas a guerra às drogas?
Sem dúvida a violência nas favelas está diretamente relacionada a uma guerra às drogas que provoca um nível de violência absolutamente inaceitável que provoca mortes por todos os lados – mortes de policiais, mortes de supostos traficantes e mortes de pessoas que acabam perdendo a vida simplesmente porque moram nesses locais e são espectadores trágicos de uma estratégia perversa de combate ao crime.
A bancada evangélica no Congresso Nacional seria a responsável por esses excessos na guerra às drogas?
Não diria que a bancada evangélica é responsável pela violência da polícia, mas, claramente, são eles que apoiam sim a internação compulsória e, vale lembrar que muitos deles são proprietários de redes de comunidades terapêuticas que recebem dinheiro público para, supostamente, “curar o vício das drogas” e, em muitos casos, já se encontram comunidades terapêuticas que vendem dois por um e se dizem capazes de “curar o vício das drogas e de ser gay”. Este certamente foi um dos equívocos do governo Dilma que deu combustível de todo tipo (político e financeiro) para que essa rede de comunidades terapêuticas crescesse ao arrepio da lei.
Pensando no panorama mundial é possível dizer que, nesse momento, os EUA estão afrouxando a legislação na área de drogas?
Isto é muito interessante porque foram os Estados Unidos que lideraram a chamada Guerra às Drogas, fortemente desde os anos 1970, com o governo Nixon, e agora estamos vendo aquele país passar por transformações incríveis. Metade dos estados americanos já legalizaram a maconha medicinal. Dois Estados, Colorado e Washington, já legalizaram a maconha recreacional, e agora brevemente Washington D.C., a capital da república, vai votar pela maconha recreacional.
Voltando ao assunto do sistema penitenciário, quem é o preso no Brasil?
O preso no Brasil é pobre, com baixa escolaridade, predominantemente negro. Ou seja, o preso brasileiro faz parte de uma minoria política, sem voz, sem vez na sociedade. Quem tem melhores condições sócio-econômicas e, principalmente, pode pagar um bom advogado, ou ainda, tem recursos para corromper a polícia, não vai preso, exceto em casos muito excepcionais. Aqueles casos que acabam por fazer crer que o sistema funciona pra rico e pra pobre. Mas, sabemos que não é assim. O sistema de justiça criminal está aí pra criminalizar a pobreza. Apenas isto. Não nos enganemos.
Qual a perspectiva da população diante do preso?
É até lugar comum você dizer que a classe média só se preocupou com o preso quando havia representantes da classe média na cadeia, época da ditadura e estamos falando dos presos políticos. Quem está hoje atrás das grades não tem nenhuma importância para a sociedade. O que a sociedade quer? Que as penas sejam agravadas, que rebaixem a maioridade penal.
Que acha da diminuição da maioridade penal?
Rebaixar a maioridade penal não vai resolver coisa alguma. Só agravar. A quantidade de menores que cometem crimes violentos é um percentual muito pequeno, mas quando um adolescente comete um crime violento aquilo ganha um foco exagerado e logo renasce esse discurso sobre a redução de maioridade penal. A verdade é que a maioria dos adolescentes são presos por delitos relacionados a drogas e é bom lembrar que tráfico de drogas existe em todo lugar do mundo e não necessariamente provoca violência. É a chamada Guerra às Drogas que provoca a violência.
Mas as instituições para jovens infratores já são uma cadeia, não é mesmo?
Antes de defender a diminuição da maioridade criminal é preciso defender que o Estatuto da Criança e do Adolescente seja cumprido. Oferecer a estes jovens uma expectativa, investir numa possibilidade de capacitação, para que este sujeito possa ter condições de pensar em disputar um lugar no mercado de trabalho convencional e não apenas na boca da sua favela.
E a polícia?
Nós temos duas polícias (militar e civil) que não se falam, que não conseguem trabalhar de forma coordenada. É uma guerra de poder.
Aqui as polícias não se falam a não ser no Café Comunitário uma vez por mês, que é aquele café com a comunidade para ouvir as reclamações da comunidade. Não existe qualquer trabalho integrado. Precisamos reformar a polícia, pensar, por exemplo, em duas polícias com ciclo completo, como é a proposta que tramita no Congresso Nacional. Ou seja, duas polícias que terão poderes de reprimir e investigar e não duas polícias que competem entre si 24 horas por dia e nem mesmo compartilham informações.
Qual a sua opinião sobre a situação das UPPs no Rio de Janeiro?
Houve a necessidade de se criar alguma estratégia de segurança pública com vistas à Copa do Mundo e às Olimpíadas. E, assim, criaram-se as UPPs. As UPPs não são uma política de segurança pública, mas uma estratégia que visava dar segurança aos grandes eventos.
E as milícias?
As áreas dominadas pelas milícias continuam a prosperar. Quer dizer que a quantidade de esforços direcionada às UPPs foi de tal ordem que isso permitiu que as milícias crescessem.
Já são 10 mil policiais nas UPPs. Temos problemas enormes em várias áreas, na Baixada, Niterói e São Gonçalo por exemplo. Se você concentra seus esforços nas UPPs deixa de lado outras áreas. Que fique bem claro – o Rio de Janeiro não tem uma política de segurança pública.
Mas será que as armas apenas trocaram de mãos nas UPPs?
As favelas viviam sob o jugo de grupos de traficantes que dominavam a comunidade fortemente armados, impondo o terror e agora o domínio passou para a polícia.
As UPPs se transformaram numa estrutura de dominação do espaço público e são os policiais que ditam as regras do convívio cotidiano.
E a época do Brizola? Ele foi e é uma figura controversa na política. Existem muitas histórias sobre sua relação com o tráfico no Rio de Janeiro.
Neste tema há muitos equívocos. As pessoas repetem como um mantra que a polícia não podia subir as favelas no período do governo Brizola e por isso a criminalidade tomou conta. Nunca houve uma determinação para que a polícia não subisse o morro. A ordem era: sobe, mas nada de bota na porta do morador, vamos subir mas vamos respeitar essas pessoas. Acho que o tema do respeito a essas populações foi mal entendido e é sempre preciso lembrar que direitos humanos ou valem para todos ou não valem pra ninguém.
Mas hoje a sociedade tem se manifestado contra a violência, não?
Há reações aqui e ali. Em favelas como a Maré ou a Rocinha temos visto reações importantes quando acontecem tragédias como foi a chacina da Maré, que está fazendo um ano e quando nove pessoas foram mortas pela polícia. Também na Rocinha depois do desaparecimento do Amarildo. Mas, a verdade é que só no ano de 2013 a polícia no Rio matou 415 pessoas. A polícia no Brasil mata cinco pessoas por dia. E ninguém parece se emocionar com isto. Essas mortes não mobilizam a sociedade porque quem está sendo morto pela polícia é o pobre, o negro e o favelado – pessoas que, em sua maioria, não tem voz na sociedade. Cadê a população nas ruas se manifestando por causa dessas mortes?
Há dois meses, na favela de Costa Barros um menino de 2 anos foi morto na cama quando a polícia entrou na favela trocando tiros com os supostos traficantes. Saiu uma matéria pequena, menos de um quarto de página. Por que o caso do Amarildo tomou a proporção que tomou? Por que aconteceu na Rocinha e os moradores desceram para o Leblon e Ipanema – para as áreas ricas da cidade. Aí sim, parece que todos acordaram.
E a privatização dos presídios?
Filosoficamente e ideologicamente é um absurdo. Se o Estado me tira a liberdade, o Estado tem a obrigação legal e moral de administrar a minha privação de liberdade. Eu sou absolutamente contra a prisão privada. Ademais, esse é um modelo que acaba por alargar, para muito além da necessidade, a oferta de vagas e acaba por provocar um crescimento ainda mais agudo do encarceramento em massa que o Brasil já está perseguindo, seguindo o exemplo equivocado dos Estados Unidos. Claro que o Estado, tem dificuldades, tem que fazer licitação, concurso para os funcionários… A iniciativa privada faz isso muito mais rápido e em muitos casos ainda pega financiamento do BNDES. Eu até já defendi isso no passado – a criação de novas unidades prisionais (jamais privadas) para resolver o problema de superlotação. Hoje tenho clareza de que se a lei brasileiras fossem respeitadas no país, a gente não teria a superlotação. Fizemos através da Associação pela Reforma Prisional, no Rio, durante 4 anos, o mapeamento da situação dos presos provisórios e vimos que dois de cada três presos estavam presos ilegalmente. A gente acompanhou alguns milhares de casos desde o momento da prisão até o momento da sentença e vimos que dois de cada três não recebiam uma pena privativa de liberdade, por que ou eram absolvidos ou recebiam uma pena alternativa. Ou seja, estavam presos ilegalmente. Na outra ponta, existem milhares de presos no Brasil com direito à liberdade condicional e não conseguem o benefício por falta de assistência jurídica adequada.
O sistema penitenciário deveria ser um sistema que visasse a reinserção na sociedade, mas no Brasil isso não acontece, não é?
Mas isso não acontece em lugar nenhum do mundo. Ninguém aprende a viver em liberdade tendo a sua liberdade restrita. Um antigo ministro da justiça inglês dizia que a pena de prisão é apenas uma maneira cara de tornar as pessoas piores. Você vai pra prisão pra ser castigado e o castigo é a privação da liberdade. Não pode ir além disto. O preso é frequentemente vítima de violência dentro da prisão, sua família é desrespeitada e humilhada. A sociedade parece ignorar que esses presos voltarão para a rua. O cara vai preso por desobedecer as leis do país e é preso num lugar onde a lei é descumprida 24 horas por dia. No Brasil não temos pena de morte nem prisão perpétua, então todo preso vai sair e é bom a sociedade pensar nisso. Quanto maior a violência vivenciada dentro dos muros, mais violento ele será quando sair.
Você declara seu voto?
Eu vou votar na Dilma, contrariada, mas vou votar. Tivemos conquistas sociais e não quero que a gente perca um milímetro do que a gente conquistou nessa área. Não tenho dúvida que os 12 anos do governo do PT tiveram um impacto enorme na redução da pobreza e da desigualdade nesse país. Durante o governo FHC houve uma diminuição da pobreza, mas a redução da desigualdade que aconteceu no governo do PT, eu acho que é um patrimônio que este país não pode perder. Eu voto contrariada porque olho muito para a área de segurança pública, evidentemente, e para a política na área de drogas. Ao longo desses 4 anos do governo Dilma a área de segurança pública foi absolutamente ignorada. Ela assumiu a postura de que isso é problema dos governadores, eles que se virassem, e aqui ou ali havia algum aporte de recursos. Isto é inadmissível.
Na área do sistema penitenciário também aconteceu rigorosamente nada.
A gente está no final do governo de uma mulher que foi presa e torturada, e hoje em 2014 em unidades prisionais no interior de São Paulo mulheres ainda usam miolo de pão como absorvente higiênico. No início do governo Dilma havia uma proposta de um grande investimento nas unidades femininas. Não houve. A frustação de quem trabalha nesta área é muito grande. Por outro lado, na área de política de drogas, Dilma não avançou nada. Ao contrário, o governo federal lançou um programa equivocado (Crack é possível vencer) e tornou-se refém da bancada evangélica que prega a internação forçada do usuário problemático de drogas, sem investimento adequados em programas efetivos de prevenção ou redução de danos.
E para governo estadual?
No Rio de Janeiro eu voto no Lindberg. No cenário do Rio de Janeiro ele é o candidato que pode implementar uma política de segurança pública mais alinhada com valores que eu defendo, e como representante do PT, eu acho que também vai haver um investimento que eu quero ver na área social, que a gente não viu nesses últimos anos no Rio de Janeiro.