Para Silvia Ramos, discurso “duro contra o crime” encobre a brutalidade e a ineficiência policial
Estudiosa da violência no Brasil e coordenadora do CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes), a cientista social Silvia Ramos diz que pesquisadores de outros países não acreditam quando os dados sobre a violência policial no Brasil são apresentados pelo mundo.
Ao analisar os dados sobre a letalidade envolvendo PMs como autores de mortes, seja no trabalho oficial ou durante a folga, bem como quando os policiais são as vítimas, a cientista social deu a seguinte entrevista:
R7: Qual avaliação a senhora faz sobre esse total de 11.569 mortos no enfrentamento entre PMs e parte da população civil em pouco mais de 19 anos no Estado de São Paulo?
Silvia Ramos: Os números são inaceitáveis. O Brasil é conhecido no mundo por ter uma das polícias mais violentas entre países democráticos. Há uma contradição entre o avanço de nossa sociedade em termos de direitos civis gerais e a relação que as polícias mantêm com a sociedade. Especialmente com os mais pobres, com os jovens negros, os moradores das regiões mais afastadas do olhar da mídia e das autoridades, as áreas com menor capital social. Ali é onde a polícia mais se excede. Pelo último levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, tomando os dados apenas das polícias que divulgam as mortes provocadas em ações policiais (diversos Estados escondem esse dado e não o passam nem mesmo ao governo Federal) cinco brasileiros são mortos todos os dias em ações policiais. Quando falamos isso no exterior, os pesquisadores e os policiais de outros países não acreditam.
O levantamento que vocês [do R7] apresentam agora tem uma novidade importante. Contabiliza não apenas as mortes por agentes policiais em serviço, mas também os homicídios provocados por policiais quando não estão atuando como policiais. E também as mortes de policiais na folga. De fato, a cultura disseminada em polícias de todo o Brasil, mas em especial em São Paulo e Rio de Janeiro, com a mística da Rota e do Bope, de que o policial deve combater o crime a qualquer custo; e não de que o policial deve proteger a vida a qualquer custo, leva a que fora de serviço o policial se envolva em situação de conflitos, disputas e as mortes ocorram com frequência ainda maior do que em serviço.
Mas não devemos nos esquecer que a ideologia Rota-Bope, a metáfora da guerra, dos “duros contra o crime” esconde, no sentido em que dá uma “fachada” a dinâmicas em que o que está por trás das mortes que envolvem policiais muitas vezes é corrupção, extorsão, acertos de contas — quando não extermínio, execuções, ações de milícias e esquadrões. Ou seja, grupos organizados dentro da polícia, para promover violência com fins lucrativos. Atrás do policial “durão” se esconde o agente corrupto. Isso está bem descrito na literatura sobre polícia no mundo todo.
R7: Como a senhora avalia a atual política de segurança pública do Estado de São Paulo? As autoridades da Segurança Pública têm um discurso uniforme para defender o combate aos crimes contra o patrimônio. Em defesa dessa premissa de defender o bem material, a Polícia Militar pode se tornar extremamente violenta?
Silvia Ramos: Entre 2009 e 2012, Antonio Ferreira Pinto, oficial aposentado da PM e ex-procurador do Ministério Público, atuou como secretário da Segurança Pública de SP e colocou a Rota na linha de frente da repressão ao PCC (Primeiro Comando da Capital). Em 2012, a estratégia deu início a uma guerra, em que o crime organizado matou pelo menos 26 PMs na Grande SP, enquanto a ação de policiais fardados e de grupos de extermínio provocou centenas de mortes na periferia. Num único mês (maio de 2013) da gestão do novo secretário de Segurança, Fernando Grella, as mortes por intervenção policial caíram 84% na capital. No total de um ano, comparando 2012 com 2013 em todo o Estado de São Paulo, houve 39% de redução: em 2012, policiais militares mataram 546 pessoas em confrontos, no ano seguinte foram 335. Para quem olha essa história a partir do que ocorre no Rio de Janeiro, o que dá para dizer é que as mortes provocadas pela polícia são extremamente sensíveis a comandos. A simples mudança do secretário fez as mortes por intervenção policial despencarem.
Alguma coisa houve na gestão da segurança em São Paulo que a orientação do secretário deixou de ser cumprida como no início e as mortes provocadas pela polícia — incluindo as mortes fora de serviço, como vocês mostram na matéria — não continuou decrescendo.
R7: Por quais motivos parte da população tem a ideia de que a polícia eficiente é a polícia que mata supostos criminosos?
Silvia Ramos: O discurso “duro contra o crime” produz sentido no mundo todo (são as chamadas políticas tough on crime extremamente usadas em momentos de crises) e encobre brutalidade e ineficiência policial. Expressões como “bandido bom é bandido morto” são muito populares, especialmente em épocas de eleições. Paradoxalmente, são ideias que encontram apoio também em parte dos setores mais pobres da população e nos bairros de periferia, aqueles mais vulneráveis à brutalidade e corrupção policiais.
Nada deixa uma sociedade mais desamparada do que o sentimento constante de insegurança, as histórias próximas de pessoas que foram machucadas, assaltadas ou mortas. Nada deixa a população mais frágil do que viver com medo. Uma sociedade onde as políticas de segurança estão sendo ineficazes é presa fácil desse tipo de discurso, curiosamente o mesmo discurso desde os anos 1950, sem nenhuma modernização. Na minha opinião, as “ondas” de reação, como as que produzem o apoio aos linchadores, a execuções, e a (in)justiças com as próprias mãos têm que ser combatidas de uma forma muito simples. São atos ilegais e serão punidos como determina a lei; de preferência de forma exemplar.