Repressão ao usuário vem crescendo. Em um ano, casos subiram em 15%
RIO – Já passava das 3h quando Thiago Tomazine, então com 22 anos, foi parado por dois policiais militares na porta de sua casa, na Tijuca, depois de uma noite servindo bebidas em um bar do Leblon, onde trabalhava como garçom. Após PMs encontrarem 600 miligramas de maconha em seu maço de cigarros, ele foi levado a uma delegacia, onde ficou até amanhecer, enquanto era feito um boletim de ocorrência. O fato aconteceu em 2012 e, até hoje, a anotação por porte de drogas consta em sua ficha criminal.
O caso engrossa estatísticas que comprovam: a repressão ao usuário vem crescendo nos últimos anos, na contramão da discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) para a descriminalização do porte de drogas para uso próprio. Há mais processos tramitando no Tribunal de Justiça do Rio por cultivo ou porte de entorpecentes do que ações por tráfico. A pedido do GLOBO, a Divisão de Coleta e Tratamento de Dados do TJ levantou que, de 2013 até julho de 2015, foram abertos 20.984 processos por porte de drogas para uso próprio, contra 20.823 referentes a pessoas acionadas na Justiça por tráfico.
— Ao me levar para a delegacia, o policial militar disse que maconha era a erva do demônio. O delegado não queria que eu assinasse o 28 (artigo da Lei 11.343, que define quem é e quais são as punições para o usuário de drogas). Então, o PM insistiu: “Empurra nele, doutor” — conta Thiago, que foi julgado à revelia e condenado a frequentar sessões dos Narcóticos Anônimos, às quais nunca compareceu.
EM UM ANO, CASOS SOBEM 15%
Uma comparação da quantidade de processos criminais por porte de drogas para consumo próprio abertos em 2013 e 2014 mostra que, de um ano para o outro, houve um aumento de 15,4% na quantidade de ações, passando de 7.186 para 8.298. Até julho deste ano, foram 5.500. O advogado Emílio Figueiredo, consultor jurídico do site Growroom, que defende o cultivo e o uso medicinal da maconha, afirma que as estatísticas confirmam ‘‘uma lógica do mercado’’: o número de consumidores é maior do que o de fornecedores. Mas ele chama a atenção para o fato de o número de processos estar crescendo justamente quando se debate a descriminalização no STF. Figueiredo apoia uma reformulação da política pública de drogas:
— Hoje, quem é autuado como usuário fica com o nome sujo por anos. Considero isso algo grave. O resultado mais negativo de tamanho rigor é percebido quando a pessoa se candidata a um emprego.
Segundo Ricardo André de Souza, que integra a Coordenação de Defesa Criminal da Defensoria Pública, houve um aumento no número de usuários detidos porque o Judiciário sinaliza para a polícia que, mesmo sendo um caso que não cabe prisão, as pessoas devem responder a processos criminais.
— Muitas vezes, o usuário é preso como traficante porque não existe uma definição sobre a quantidade de drogas que caracteriza o que é uso e o que é tráfico. Espero que o STF resolva essa questão, pois, hoje, os critérios são puramente subjetivos — diz o defensor.
A lei sobre a repressão ao tráfico é de 2006. O texto reduziu a punição ao uso de drogas para consumo próprio — não cabe mais a pena privativa de liberdade prevista na legislação anterior, a Lei 6.368 de 1976. A norma vigente, porém, não evitou que o consumo deixasse de ser crime, o que acaba abarrotando os escaninhos do TJ com processos. Apesar de o usuário não ser, em tese, passível de prisão, os critérios subjetivos da lei podem levá-lo à cadeia por tráfico. Só depois, diante de um juiz, o caso pode ser desclassificado, passando para porte de drogas.
Foi o que aconteceu com o bombeiro hidráulico Cláudio (nome fictício), de 23 anos, preso em 2013 com 500 miligramas de crack na casa do pai, em Saquarema. Segundo ele, PMs entraram na residência em busca de armas. Encontraram a droga, supostamente para consumo próprio. Resultado: Cláudio passou um mês e seis dias no Presídio Ary Franco, em Água Santa, por tráfico.
— Fiquei numa cela com 150 pessoas, apesar de ter sido planejada para 20. Dormia em pé. Perguntaram se eu tinha facção. Como eu disse que não, me colocaram com os estupradores. Peguei sarna. Levei um mês e seis dias para ficar diante de um juiz — lembra Cláudio.
BELTRAME DIZ QUE POLÍCIA É COBRADA
Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) obtidos com exclusividade pelo GLOBO revelam que, no ano passado, 14.837 pessoas foram levadas à delegacia por posse de drogas para consumo próprio, enquanto 26.179 acabaram sendo presas por tráfico. O número de processos por tráfico em trâmite no TJ é menor que os relacionados a uso de entorpecentes porque, segundo o defensor público Ricardo André de Souza, os primeiros envolvem, geralmente, mais acusados numa mesma ação.
Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, a socióloga Julita Lemgruber diz que há uma cultura conservadora por parte do Judiciário, que, segundo ela, “demoniza as drogas”. O fato de a lei prever o uso de entorpecentes como crime já faz com que o dependente tenha um antecedente se responder a um segundo processo, perdendo sua condição de réu primário.
— É importante que o STF deixe claro qual é a quantidade de drogas que distingue o traficante do usuário. Com um único baseado, o negro pobre acaba sendo considerado traficante. O branco de classe média, frequentador de uma universidade, será sempre usuário — sustenta a socióloga.
O secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, destaca que discute o tema frequentemente. Ele afirma que a sociedade cobra a ação da polícia para reprimir o consumo de drogas:
— Somos cobrados quando uma pessoa consome drogas na rua. Se não houver repressão, vão dizer que o policial está sendo subornado para não reprimir. A sociedade precisa entender que existe um mal maior para combater.