Rio gasta milhões com prisões indevidas de acusados por tráfico, diz pesquisa

RIO — A população carcerária do estado é pouco maior do que o número de moradores em Ipanema: 44 mil pessoas estão espalhadas por 50 unidades prisionais. Desse total, 18 mil (41%) são presos provisórios à espera de julgamento. O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), da Universidade Cândido Mendes, divulga novo estudo sobre presos nessa situação, desta vez com foco nas acusações de tráfico de drogas.

Todas as 1.330 prisões em flagrante por tráfico na capital em 2013 foram acompanhadas pela equipe de pesquisadores, coordenada por Julita Lemgruber. O trabalho durou dois anos e tinha como objetivo analisar o acesso dos presos ao direito de defesa. O estudo conclui que o número de pessoas à espera de julgamento é excessivo: 72,5% ficaram encarcerados durante o processo. Destes, apenas 45% acabaram condenados à pena privativa de liberdade. As prisões restantes (55%) são consideradas indevidas pelos pesquisadores, e custaram ao estado R$ 8 milhões, considerando o gasto de R$ 1,7 mil mensais por preso.

— O Brasil tem taxas vergonhosas de presos provisórios em comparação com outros países. O que acontece é um desrespeito à legislação. Prisão provisória deve ser o último recurso. Algumas sentenças são patéticas, mostram quão conservador é o Fórum fluminense, e como o tema das drogas foi demonizado. O traficante virou a síntese do mal na sociedade — afirma Julita, coordenadora do Cesec e diretora do sistema penitenciário do Rio entre 1991 e 1994.

UM ANO PARA FALAR COM O JUIZ

Em média, os acusados ficaram presos 221 dias, pouco mais de sete meses. Há casos grotescos, como o de um homem que passou um ano e um mês atrás das grades antes de ser absolvido pelo juíz por falta de provas. Mas absolvição é prática incomum quando o assunto é tráfico. Um recorte mais minucioso sobre 242 casos mostrou que falta de provas não é algo que impeça a condenação. Especialmente quando os policiais que efetuaram a prisão são as únicas testemunhas de acusação, o que aconteceu em 88,4% dos casos. Trata-se de uma prática exclusiva do Fórum fluminense, autorizada pela chamada Súmula 70, segundo a qual “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”.

— A alegação de tráfico quase sempre é feita pelos policiais e aceita pelos juízes, o que contraria a Constituição e o Código Penal. Alguns magistrados se recusam a aceitar a Súmula 70, mas são pouquíssimos — afirma Julita.

Apesar de 80,6% dos réus serem primários, 72,2% estarem sozinhos no momento da prisão, 92,5% não portarem arma de fogo e 85,5% não apresentarem nenhum objeto indicativo de tráfico (prensas, balanças, material de embalagem, dinheiro), as acusações de envolvimento com o comércio do drogas são quase sempre mantidas.

Para Julita, ser acusado de traficante tem a ver com a “rotulagem dos réus segundo atributos econômicos e sociorraciais, que acabam por levar jovens pobres e negros, sem recursos para pagar advogados, ao encarceramento por tráfico”. Enquanto isso, continua a professora, “outros jovens, com a mesma quantidade de drogas, mas com melhores circunstâncias sociais e pessoais, são enquadrados como usuários e não submetidos à prisão”.

A pesquisadora usa o trecho de uma das sentenças analisadas como exemplo de uma pré-disposição do Judiciário a condenar: “Foi indiciado (o réu) pela prática, em tese, do delito de tráfico de drogas, que é assemelhado ao hediondo, o que evidencia por si só a sua periculosidade”.

LUZ NO FIM DO TÚNEL

O estudo mostra que o tempo médio para a primeira intervenção da defesa é de 50 dias após a distribuição do processo. Após este período, 59,6% dos réus foram assistidos por defensores públicos. No entanto, 97% não tinham nenhuma assistência jurídica no momento em que o auto de flagrante foi lavrado na delegacia. Embora seja considerada a mais bem estruturada do Brasil, a Defensoria Pública fluminense tem apenas 35 defensores na área criminal.

— Nada justifica manter uma pessoa presa no início do processo se no fim a perspectiva jurídica é de não condenação à prisão — afirma Márcia Fernandes, coordenadora jurídica da pesquisa.

A pesquisa traz uma revelação otimista, apesar de tudo. A Lei das Cautelares, de 2011, que criou alternativas à prisão provisória, fez cair de 95% para 72,5% o número de acusados de tráfico que continuam presos durante o processo. A queda também é puxada pela implantação das Audiências de Custódia, que preveem a apresentação do acusado em juízo em até 24 horas após a prisão. Mas, por enquanto, as audiências só acontecem na capital, de segunda a sexta-feira.

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