De acordo com Julita Lemgruber, socióloga e coordenadora da campanha “Da proibição nasce o tráfico”, a iniciativa pretende mostrar os danos da “guerra” e como poderiam ser evitados
“A maconha é a porta de entrada para as outras drogas”. “A legalização das drogas leva a um aumento do consumo”. As duas afirmações são corretas? Não, defendem os organizadores da campanha “Da proibição nasce o tráfico”, que tem como objetivo desconstruir mitos sobre a política de drogas no Brasil e discutir as consequências negativas da proibição de drogas na sociedade.
Idealizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESec), da Universidade Cândido Mendes e coordenada pela socióloga Julita Lemgruber, a campanha de comunicação foi criada pelos cartunistas André Dahmer, Angeli, Arnado Branco, Laerte e Leonardo, que podem ser vistas em ônibus do Rio de Janeiro, página no facebook e no hotsite da campanha. No vídeo abaixo, os cartunistas que colaboraram com a campanha falam de suas visões sobre o proibicionismo.
A campanha foi elaborada após um estudo do CESeC concluir que há muito desconhecimento sobre a proibição aos entorpecentes.“Defendemos a legalização das drogas para controlar, fiscalizar, taxar e regular. Hoje, elas estão liberadas”, afirma Julita, em entrevista à Ponte.
O que é a campanha “Da proibição nasce o tráfico”?
Julita Lemgruber- Queremos mostrar que a política de guerra às drogas é uma política que causa mais violência do que a violência que se imagina combater. Nós temos um tráfico armado violento porque lidamos com essa questão também de forma violenta. O que queremos é mostrar os danos dessa guerra e como isso poderia ser evitado. Defendemos a legalização das drogas. Hoje, elas estão liberadas. Queremos legalizar para controlar, fiscalizar, taxar e regular. O que defendemos é uma regulação do mercado de drogas que estabeleça locais, horários onde serão vendidas, quem poderá comprar. O exemplo do Colorado (EUA) é vitorioso [Em novembro de 2012, o Estado do Colorado aprovou, por meio de referendo, a legalização do consumo de cannabis para fins recreativos]. Eles não tem nenhuma pesquisa que indique que a criminalidade violenta aumentou, pelo contrário. Depois da legalização da maconha, a criminalidade diminuiu, os crimes contra o patrimônio também.
Qual é o público alvo da campanha? A senhora comentou em seu perfil do facebook , “a reação do Sergio Cabral à chacina do Alemão em 2007, quando a polícia matou 19 pessoas. Ele aplaudiu os policiais dizendo que aquela era a polícia que ele queria. Dias ou semanas depois, a policia matou um menino de classe média, dentro do carro de sua mãe, no bairro da Tijuca. O mesmo governador sustentou na mídia que aqueles policiais eram “debilóides”. A campanha tem como alvo também os representantes do poder público?
Julita Lemgruber- Todos são público alvo. Nós organizamos grupos focais para discutir a questão, por faixa etária, escolaridade, grupos de profissionais, da área de saúde, que atuam no sistema de justiça criminal, grupos de religiosos. Percebemos que em todos os grupos, até nos de saúde, há uma enorme falta de informação sobre políticas de drogas. A campanha tem também esse propósito, que é estimular as pessoas a refletir, a buscar informações. Quero lembrar o caso do Uruguai em relação à redução da maioridade penal. Em 2011, houve uma pesquisa de opinião no Uruguai e mais de 70% da população era a favor da redução da maioridade penal. Houve um trabalho fantástico ao longo de três anos feito por algumas organizações não governamentais envolvidas com direitos humanos e tiveram sucesso extraordinário. No ano passado, a população uruguaia votou numa consulta popular e a proposta de redução foi derrotada. No período de três anos houve uma inversão. Pensando um pouco por aí, estamos com essa campanha de busdoor, página no facebook com milhares de visitas, curtidas e compartilhamentos. Claramente esse é um tema que provoca interesse. E temos que aceitar que o público está mal informado sobre esse tema e que a reação contra a legalização das drogas passa pela desinformação.
Qual é a consequência da guerra às drogas nas favelas? Como é a relação entre ela e a violência policial?
Julita Lemgruber- No ano passado, no Rio de Janeiro, a polícia matou 581 pessoas. É uma polícia que mata e morre muito também. Tanto as mortes provocadas pela polícia, assim como as mortes de policiais e as mortes resultado de balas perdidas se tornaram uma coisa banalizada. Ninguém dá mais grande importância a isso. Há um mês atrás estive num festival de cinema na Holanda, onde foi exibido o filme “Á queima roupa”, de Theresa Jessouroun, que retrata a violência policial no Rio nos últimos 20 anos, começando com a tragédia de Vigário Geral. Foca diferentes chacinas que ocorreram no Rio, como a chacina da Baixada e a chacina do Alemão. Perguntei quantas pessoas a polícia tinha matado na Holanda no ano passado e responderam: apenas uma. Quando se menciona esse número do Rio de Janeiro, ninguém acredita.
A guerra às drogas legitima a violência policial. É como se a polícia tivesse um bilhete azul que permite uma ação truculenta, porque a justificativa é que se vai combater o trafico de drogas, o controle armado do território. Toda dificuldade que as UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) estão tendo hoje no Rio mostram isso. Não é com polícia que vamos resolver o problema. Vamos resolver quando essas populações tiverem uma oferta de serviços que permita essa garotada ter outras opções de mobilidade social que não o tráfico de drogas.
Qual sua opinião sobre o modelo de ocupação militar das favelas do Rio de Janeiro?
Julita Lemgruber – No início do projeto das UPPs estavam conseguindo manter dialogo razoável com as comunidades. Elas foram criadas num ritmo mais lento, então era possível fazer uma articulação melhor com a comunidade. Mas a medida que a Copa do Mundo se aproximou e houve a criação de UPPS num ritmo frenético, esse programa, que está longe de ser chamado de política de segurança, se transformou em algo muito difícil de se administrar, de se gerenciar na ponta. Faltou capacidade, faltou a polícia militar manter diálogo com a comunidade. Não há policiamento comunitário que seja bem sucedido se não se estabelecer uma relação de respeito com a comunidade. Acho que hoje a Polícia Militar do Rio de Janeiro tem à frente uma liderança que nos dá alguma esperança que esse quadro possa ser revertido. Hoje, o Rio de Janeiro tem uma chance de reverter esse processo.
Qual é a relação entre guerras às drogas e população carcerária no Brasil?
Julita Lemgruber – Um terço da população carcerária no Brasil hoje está presa sob a acusação de tráfico de drogas. A legislação no Brasil dá margem à criminalização da pobreza, isso é óbvio. A legislação de 2006 sobre drogas diz que o juiz pode avaliar as circunstâncias sociais e pessoais do acusado para julgar se ele realmente é usuário ou traficante. É claro que é uma brecha muito grande na lei que permite a criminalização de negros e de pobres no Brasil. A Luciana Duarte, da UFRJ, fez pesquisa sobre perfil da população carcerária presa por tráfico de drogas. O perfil é do traficante que foi pego com pequena quantidade de droga, não estava armado, não pertencia a nenhuma facção, estava fazendo tráfico sem violência. Basicamente esse é o perfil do traficante que acaba preso no Brasil. Estamos prendendo o cara do final da linha, o microvaregista, não os grandes traficantes. Os grandes, num primeiro momento, têm meio de subornar a polícia e depois o Judiciário. Sabemos que isso acontece em alguns lugares do Brasil. Não adianta entupir o sistema penitenciário de pessoas cujo perfil não é de criminoso violento.
Além da campanha, estamos realizando um trabalho de mapeamento da situação dos presos provisórios acusados de tráfico de drogas, que é outra insensatez completa. É a demonstração da ilegalidade da prisão provisória no RJ em relação aos acusados de drogas. Estamos mapeando isso e até fim do ano vamos mostrar com dados quantitativos e qualitativos o absurdo da prisão provisória no RJ por acusados de tráfico de drogas.