Edital será lançado para empresários suprirem falta de material e serviços em delegacias
“Essa história de procurar parcerias, que não é nova, retoma uma coisa chamada ‘reinvenção do governo’. A gente sai da versão cliente e entra na versão cidadão”
Carlos Leba Chefe da Polícia Civil do Rio
Objetivo é garantir funcionamento de unidades que enfrentam rotina de penúria devido à crise financeira do estado
Tempo de vacas magras. Moradores do Flamengo ajudam, desde março deste ano, a delegacia do Catete a se manter funcionando. Até câmeras foram instaladas graças a doaçõesCom o agravamento da crise do estado, a Polícia Civil decidiu lançar um edital público para que empresários possam doar material ou prestar serviços para garantir o funcionamento de delegacias. A ideia do programa “Juntos com a polícia” é formalizar, em contratos com duração de dois anos, uma prática que já vinha acontecendo de forma espontânea. Atualmente, moradores do Flamengo recolhem doações para abastecer a delegacia do Catete, onde falta até papel para os registros policiais. A penúria provocada pela crise econômica do estado é tanta que a Polícia Civil está recorrendo a soluções fora da própria administração pública para se manter em funcionamento. Ontem, foi publicada no Diário Oficial uma chamada pública que convoca empresas a ajudarem o órgão com doações e serviços. O edital prevê que os próprios empresários prestem serviços de graça ou paguem para que terceiros os executem. A medida também vai garantir mais facilidade na doação de materiais em larga escala. A polícia deixa claro que os doadores não receberão qualquer contrapartida da corporação. O programa foi batizado de “Juntos com a polícia” e vai se estender por pelo menos dois anos, que podem ser prorrogados.
Uma companhia interessada em participar pode, por exemplo, pagar uma obra numa delegacia. Outra pode prestar serviço de limpeza de graça por um tempo. A corporação diz ainda que a diferença do programa para a doação comum é que a Polícia Civil é quem vai escolher para que unidade vai o material ou serviço doado, e não o próprio doador.
Atualmente, uma das maiores necessidades é a obtenção de materiais básicos em grande quantidade para a polícia técnico-científica, como reagentes, luvas e aventais. Os serviços prestados por terceirizados, como limpeza e atendimento em delegacias, também estão no limite da precariedade. Os contratados para essas funções não recebem há 90 dias.
“ONDA DE VIRTUOSIDADE”
Como a falta de manutenção é grave, obras em delegacias com problemas de infraestrutura são consideradas prioridades. O atual chefe da Polícia Civil, Carlos Leba, não informou o valor da dívida da instituição, mas admite enfrentar “grande dificuldade de manter o pagamento de fornecedores em dia”:
— A situação financeira da Polícia Civil é a situação do estado, que por conseguinte é a situação da União. A gente só reproduz as dificuldades. Estou me sentindo como alguém que vai trabalhar para segurar a onda, à espera de uma onda de virtuosidade lá adiante — afirmou Leba, que assumiu o cargo no mês passado.
Para participar do programa, a empresa precisa ter situação financeira regular e enviar uma proposta à Polícia Civil, que será analisada em até 30 dias. De acordo com o edital, será obrigação da própria empresa doadora fiscalizar e monitorar a prestação de serviços, caso ela contrate uma segunda firma para executá-los. A corporação, no entanto, se compromete a dar transparência às doações e aos serviços prestados.
Para Leba, o programa será importante em um período no qual praticamente não haverá investimentos:
— Hoje temos um olhar muito grande na manutenção. De custear o que está andando. Essa perspectiva de calamidade (pública) desautoriza a gente a pensar em investimentos.
Mesmo antes da publicação da chamada pública, a Polícia Civil já havia sido procurada por companhias de transportes de carga, bancos e concessionárias de serviços, como telefonia e energia. Não seria uma iniciativa propriamente nova: com o agravamento da crise financeira, comunidades de bairro e empresários têm procurado ajudar a corporação.
DOAÇÕES JÁ OCORREM EM UNIDADES
A 9ª DP (Catete) foi “adotada” por moradores do Flamengo e da região, que fazem registros policiais na unidade. A ajuda voluntária já existe desde março, quando a própria delegada expôs a realidade da instituição, durante uma reunião que acontece mensalmente entre membros de associações de moradores e representantes da segurança pública. Perplexa com a gravidade da situação enfrentada por policiais, a presidente da Associação de Condomínios do Morro da Viúva (Amov), Maria Thereza Sombra de Albuquerque, se comprometeu a ajudar com a doação de itens essenciais como folhas de papel, produtos de limpeza e higiene e cartuchos de impressora. Ontem mesmo, ela entregou vários pacotes de papel higiênico e folhas de papel ofício. A maior remessa, Maria Thereza lembra, foi doada em abril:
— Eles não tinham um clipe, um grampeador. É duro de ver. Doamos lápis, caneta, álcool. Só de papel, já demos mais de 60 pacotes.
A associação cuida até da segurança dentro da delegacia. Um dos associados doou 12 câmeras de monitoramento, que foram instaladas no primeiro e no segundo andar do prédio e também na área externa da unidade. A presidente contou que a demanda surgiu no início deste ano depois que homens encapuzados entraram no imóvel para assaltar.
A Delegacia Especial de Apoio ao Turismo (Deat) também recebeu ajuda no meio do ano de empresários do setor hoteleiro, preocupados com as dificuldades da especializada às vésperas dos Jogos Olímpicos.
— A gente ajudaria de novo. É importante todo mundo tentar colaborar um pouco porque a segurança é de todos nós. Acho uma boa inciativa — diz Alfredo Lopes, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis do Rio de Janeiro (ABIH-RJ).
Procurada pelo GLOBO, a Firjan não quis se pronunciar sobre o edital. Já o diretor-executivo da Associação das Empresas Prestadoras de Serviço do Estado do Rio (Aeps), José de Alencar, disse que é favorável ao programa, mas com ressalvas:
— As empresas estão sempre dispostas a ajudar e não vão faltar ao chamamento, mas com um mínimo de transparência.
NAS DELEGACIAS, FALTA DE MATERIAIS
A socióloga Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Candido Mendes, também tem ponderações sobre a iniciativa da Polícia Civil:
— Claro que é melhor que isso seja feito à luz do dia em um edital formal do que por baixo dos panos, em uma relação informal. Mas, por outro lado, acho muito triste que a polícia esteja dependendo de ajuda privada. E acho preocupante quando o setor privado investe na segurança pública, porque pode acabar sendo privilegiado em relação ao conjunto da população, principalmente em relação à população mais pobre.
Já o chefe da Polícia Civil, por sua vez, defende que o programa é uma “reinvenção do governo”:
— Essa história de procurar parcerias, que não é nova, retoma uma coisa chamada “reinvenção do governo”. Para algumas pessoas é espantoso, mas, em países em que já a parceria comunidade-estado foi experimentada, isso é absolutamente normal. A gente sai da versão cliente e entra na versão cidadão.
Entre as muitas delegacias que enfrentam condições precárias está a 5ª DP (Gomes Freire). Faltam papel para fazer o registro de ocorrências e serviço de limpeza. A solução tem partido do bolso dos próprios policiais. O delegado Antonio Ferreira Bonfim Filho contou que, de duas a três vezes por semana, eles se cotizam e contratam uma pessoa para fazer a faxina na unidade. As resmas de papel vêm de “vaquinhas” feitas pelos agentes:
— Gastamos, no mínimo, 20 folhas com um flagrante, sem contar as cópias que precisamos fazer para outros órgãos. E fazemos, por dia, de 40 a 50 ocorrências. O gasto é muito grande — informou o delegado. — Quando está tudo maravilhoso, é fácil. Mas estamos em dias difíceis, e todos têm que fazer algo para suprir essas faltas.