Quem mandou cometer crime?

Há muitos anos ouvi de um guarda numa cadeia feminina: “mulher que delinquisse pela segunda vez eu mandava esterilizar. Não deveria ter o direito de ser mãe”. Atônita, perguntei: e com os homens, o que você faria? O guarda tranquilamente me respondeu: “com homem é diferente”. Fiquei paralisada e me perguntava: o que estou fazendo neste lugar? Devo continuar aqui, onde o peso da cultura patriarcal que ao homem tudo permite encontra sua manifestação mais cruel?

Continuei e não me arrependo, embora a frustração só tenha aumentado ao longo dos anos. Mas a indignação também aumentou. É o que me mantém viva. Naquela época, final dos anos 1970, colhia dados no Talavera Bruce, penitenciária feminina do Rio de Janeiro, para minha dissertação de mestrado, mais tarde publicada com o título Cemitério dos Vivos. Senti que precisava dar voz àquelas mulheres, além do mais vítimas de abandono por parte das famílias e dos companheiros, que muitas vezes diziam aos filhos que as mães haviam morrido, tal a vergonha de admitir que estavam presas. Acreditei que tinha de denunciar o perverso padrão de moralidade segundo o qual a mulher autora de um crime é alguém que “pecou” duplamente e por isso merece castigo duplo: não só violou a lei, como recusou o papel que lhe foi reservado pela cultura patriarcal de esposa fiel e reprodutora dócil, dedicada e submissa.

Pouco ou nada mudou desde aquele tempo. Na mesma Talavera Bruce, uma presa recentemente deu à luz numa cela de castigo. Apesar de seus gritos, e dos gritos de suas companheiras, ninguém da administração se moveu. A presa entrou em trabalho de parto sem qualquer assistência e saiu da cela com o bebê nos braços e o cordão umbilical ainda pendurado. “Quem mandou engravidar?” “Quem mandou cometer crime?” “Gostou de transar? Agora aguenta!” – são frases que muitas presas grávidas ouvem de funcionários nas cadeias. Quando em hospitais, dão à luz algemadas. Quando menstruadas, usam miolo de pão no lugar de absorventes íntimos que praticamente não existem.

Já acreditei que as prisões poderiam ser transformadas de dentro para fora. Cheguei a dirigir o sistema penitenciário do Rio de Janeiro apostando nisso. Ilusão. Só valeu pela certeza de que naquele curto espaço de tempo a violência intramuros foi reduzida. No último dia de minha administração ouvi de um guarda, conhecido como violento e espancador de presos, com os olhos marejados: “Obrigado. Aprendi que é mais fácil trabalhar num lugar sem violência”. Mas essas pequenas mudanças não se sustentam porque, na verdade, as prisões foram feitas para punir e não para “ressocializar”, como ainda se afirma hipocritamente. No Brasil, as prisões são particularmente cruéis. São lugares supostamente feitos para isolar da sociedade pessoas que cometeram violências graves, mas onde impera a violência institucional nas suas formas mais bárbaras.

A situação das mulheres presas, em particular, vem-se deteriorando assustadoramente nos últimos anos devido ao forte aumento da população prisional feminina. Segundo o levantamento mais recente do Ministério da Justiça, divulgado esta semana, o Brasil já tinha, em 2014, a quinta maior população de mulheres encarceradas do mundo: 37.380. De 2000 a 2014, a taxa de crescimento dessa população foi mais de duas vezes superior à dos homens: 567% contra 220%.

Aqui como em outros países, o fenômeno deriva da política de segurança que privilegiou como alvo o tráfico de drogas. Enquanto 25% dos homens presos no Brasil respondem por esse delito, entre as mulheres presas a taxa chega a 63%. A grande maioria dessas mulheres ou foi presa levando drogas para seus companheiros na cadeia, ou traficava pequenas quantidades a varejo, ocupando posições absolutamente periféricas no esquema da venda de drogas. Ainda de acordo com o levantamento do MJ, as presas são via de regra mulheres jovens, com baixa escolaridade, têm filhos, são chefes de família e únicas responsáveis pela geração de renda familiar.

Não há, portanto, como dissociar a problemática do encarceramento feminino da discussão sobre alternativas à fracassada política de “guerra às drogas”. O Supremo Tribunal Federal brasileiro, seguindo a tendência das Supremas Cortes de outros países, poderia dar um primeiro e importante passo decidindo pela descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. Ao qual dever-se-iam seguir outros passos no sentido da legalização e regulação das drogas hoje ilícitas no país.

Enquanto isso não ocorre, uma medida imediata pode ser tomada, como propõem mais de cem de entidades feministas e de direitos humanos: a liberação, no próximo indulto natalino, de todas as mulheres condenadas por tráfico de drogas e outros crimes sem violência, com penas máximas de cinco anos de reclusão. Seria um sinal bastante auspicioso de que a nossa presidente – afinal, uma mulher que já esteve presa – se preocupa com as trágicas condições das mulheres encarceradas no Brasil.

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