Ex-diretora do sistema penitenciário do Rio, socióloga diz que cadeias só servem para punir
● Autora de estudos pioneiros sobre nosso sistema penitenciá- rio, a socióloga Julita Lemgruber acrescenta agora à sua bibliografia um relato dos bastidores de sua atuação como integrante da cúpula e depois diretora do Desipe durante os dois governos Leonel Brizola. Ela falou com O GLOBO sobre “A dona das chaves” (Record), escrito com a jornalista Anabela Paiva
O GLOBO: A senhora cita no livro uma frase de Augusto Thompson, ex-diretor do Desipe que foi responsável pelo seu primeiro contato com o presídio feminino Talavera Bruce. Décadas atrás, Thompson dizia que a cadeia é apenas um espaço de punição que não regenera ninguém. Essa frase vale para o Brasil de hoje?
JULITA LEMGRUBER: Essa frase vale não só para o Brasil de hoje mas para a pena de prisão em geral. Os índices de reincidência de quem passa pela cadeia são altos em todos os países do mundo. A ideia de que a prisão teria um efeito ressocializador é um grande equívoco. A melhor frase para definir isso é a do ex-ministro do Interior da Inglaterra Douglas Hurd: “a prisão é uma maneira muito cara de tornar as pessoas piores”. O preso no Brasil custa em média R$ 1.500 por mês. O contribuinte paga caro para investir na própria insegurança. Anda mais num país como o nosso, onde as pessoas são condenadas por descumprir a lei e vão viver num ambiente em que a lei é desrespeitada 24h por dia.
● É possível imaginar duas respostas à alta reincidência. Uma, a sua, é que precisamos repensar a prisão. Outra é que, se tantos presos voltarão ao crime quando libertados, as penas deveriam ser maiores. O que a senhora acha dessa opinião?
JULITA: Todas as pesquisas mostram que quanto mais tempo a pessoa fica na cadeia, maior é a probabilidade de reincidir. Aumentar as penas é um caminho para piorar o problema. As pessoas são presas por crimes pequenos e saem de lá diplomadas em criminalidade. A pena de prisão é um instrumento tão caro, cruel e ineficaz que tem que ser reservado para quem de fato cometeu crimes violentos e se constitui numa ameaça ao convívio social. Todas as outras pessoas deveriam ser punidas de outra forma.
● Seu livro sugere que nos dois governos Brizola a reforma do sistema penitenciário não teve respaldo financeiro do Estado e tampouco apoio da sociedade. De lá para cá, algo mudou?
JULITA: O sistema penitenciá- rio continua no final da lista de prioridades, permanece a visão de que presos têm que ser tratados como bichos. A sociedade ainda não se deu conta de que se não houver direito para todos, não haverá direito para ninguém. Há um ódio contra os presos alimentado pela violência do país. Mas grande parte dos 500 mil presos do Brasil são pessoas que cometeram crimes sem violência. Uma pesquisa da Luciana Boiteux feita em 2008 mostrava por exemplo que, dos presos por tráfico de drogas no Rio, 85,9% não estavam armados e 65,4% não eram suspeitos de envolvimento com facções criminosas. Tem gente presa há semanas, meses, porque furtou três barras de chocolate, um pacote de bacalhau, um hidratante. Claramente pessoas que poderiam ser punidas com uma alternativa à pena de prisão. Se fossem brancos de classe mé- dia, não estariam na cadeia.
● A classe média deixou de se preocupar com a prisão depois que os presos políticos foram libertados?
JULITA: Certamente. Depois da Anistia, a palavra de ordem passou a ser “joga eles lá e joga a chave fora”. O Brasil aliás é o único lugar do mundo que tem prisão especial para pessoas com educação universitária. Isso é uma enorme vergonha para o país, só é possível numa sociedade extremamente desigual. ■