Polícia sem controle
Ex-ouvidora do Rio de Janeiro, socióloga diz que a polícia é violenta, corrupta e as mortes em confronto são uma farsa
Na semana passada foi registrado mais um caso de assassinato de inocente envolvendo seis policiais militares paulistas. Desta vez, o dentista Flávio Ferreira SantAna, de 28 anos, caiu morto com dois tiros disparados pelos oficiais. Foi confundido com um ladrão, e os agentes seguiram o famoso procedimento de atirar primeiro, perguntar depois. Caído no chão, Flávio não foi reconhecido pela vítima do roubo. Os policiais militares ainda tentaram incriminar o dentista, colocando em seu bolso a carteira da vítima – que foi ameaçada para não revelar a execução. Presos, os PMs alegaram que Flávio estava armado e reagiu, embora a perícia tenha derrubado esse argumento. A PM de São Paulo coleciona acusações de uso excessivo e indiscriminado da força contra negros e pobres. Já a polícia do Rio de Janeiro ganhou notoriedade pela corrupção e também pela violência. Em 2003, bateu recorde: matou uma pessoa a cada oito horas. É o que revela estudo feito pelos sociólogos Julita Lemgruber, Leonarda Musumeci e Ignacio Cano, que resultou no livro Quem Vigia os Vigias?, lançado no fim do ano passado pela Editora Record. Por dois anos eles levantaram dados em cinco Ouvidorias de Polícia, órgãos responsáveis pelo controle externo do trabalho dos homens da lei. Concluíram que a corrupção, o extermínio e o abuso de poder estão dentro das corporações brasileiras. O caso de Flávio é exemplar. Revela o viés racista que está embutido no trabalho da polícia, afirma Julita. Ex-ouvidora da polícia do Rio de Janeiro, ela concedeu a seguinte entrevista a ÉPOCA.
ÉPOCA – Quem são as maiores vítimas da violência policial?
Julita Lemgruber – A maior vítima dessa violência policial é o pobre, preto, favelado (Flávio era negro, nasceu na periferia de São ä Paulo e fez faculdade com auxílio de bolsa de estudo em uma universidade particular de Guarulhos). São essas pessoas que estão morrendo. A polícia diz que a maioria das pessoas morre em confrontos. Sabemos, e diversas pesquisas já indicaram isso, que, na maior parte dessas mortes, as pessoas levaram tiros pelas costas ou na cabeça. Um estudo realizado pela Ouvidoria de São Paulo mostrou que, nos civis mortos, o número médio de perfurações à bala era de 3,2. Em 36% dos corpos havia pelo menos um disparo na cabeça. Em outros 51%, havia tiros nas costas. Fica evidente que não são mortes em confronto, são execuções. Nas áreas de classe média ou mais ricas, a polícia se comporta melhor.
ÉPOCA – O dentista Flávio SantAna foi assassinado por policiais militares ao ser confundido com um bandido. A família acredita que ele foi morto por ser negro. Em sua opinião, o que aconteceu?
Julita – Esse é mais um caso exemplar que revela o viés racial embutido no trabalho da polícia. O policiamento ostensivo é marcado pelo preconceito. Se Flávio fosse branco, com certeza não teria morrido. Essa é uma questão preocupante.
ÉPOCA – Argumenta-se que a polícia mata muito porque os soldados também vivem expostos ao perigo. Isso é justificativa?
Julita – Em 2002, morreram, só no Rio de Janeiro, 170 policiais. É um número alto. Agora, é evidente que uma polícia que trabalha com o confronto, nem que seja entre aspas, vai ter morte dos dois lados. Isso é resultado de uma estratégia de combate ao crime. Mas vale lembrar que muitos desses policiais morrem nos horários de folga, na realização de bicos ou trabalhando para as organizações criminosas.
ÉPOCA – O que há de pior nas polícias brasileiras?
Julita – O grau de corrupção e violência a que chegou a polícia neste país é muito preocupante. Aliás, essas são pragas enraizadas na polícia brasileira. Para ter uma idéia, no ano passado a polícia fluminense matou 1.195 pessoas. Em Portugal, país que tem praticamente as mesmas proporções e população do Estado do Rio, e com um passado problemático e violento por conta da ditadura, houve duas mortes provocadas por policiais. No Rio, de cada dez pessoas mortas, duas são assassinadas pela polícia. Isso é muito grave. Dizem que as origens da violência policial no Brasil estão na ditadura. Mas o que mostramos no livro é que isso é muito mais antigo. Vem dos tempos do Brasil Colônia. Nunca, aqui, a polícia defendeu a cidadania. Ela sempre defendeu uma elite e esteve a serviço do poder. Uma das maneiras mais eficazes de mudar isso é investir em órgãos de controle da polícia, como as Ouvidorias.
ÉPOCA – Como as Ouvidorias poderiam controlar a polícia?
Julita – As primeiras estratégias de controle externo da polícia, semelhantes às Ouvidorias, surgiram nos Estados Unidos nos anos 70 e em alguns países da Europa nos anos 80. Elas surgiram da necessidade não só de controlar o comportamento ilegal e irregular de policiais, mas também, e principalmente, da necessidade de recuperar a confiança da população na instituição. Uma Ouvidoria funcionando bem, respondendo às necessidades da população, vai contribuir para que a polícia recupere o respeito. Isso, em maior escala, é sinônimo de mais segurança pública, de pessoas vivendo com mais tranqüilidade e melhor. Por outro lado, as Ouvidorias também nasceram por conta de casos emblemáticos de violência policial nos EUA, em vários Estados.
ÉPOCA – Como estão as Ouvidorias no Brasil?
Julita – No Brasil, temos graus muito altos de violência e corrupção e as pessoas não podiam ir à polícia se queixar da própria polícia. A primeira Ouvidoria a ser criada no Brasil foi a de São Paulo, em 1995. Houve um momento em que se admitia que a violência policial era muito significativa e que era preciso fazer algo. Era preciso dar um espaço para a população, principalmente para os pobres, poder recorrer a algum órgão e se queixar do comportamento violento do policial. Acredito que as Ouvidorias surgiram em função da necessidade de neutralizar a violência oficial.
ÉPOCA – Quais são as maiores reclamações que chegam às Ouvidorias de Polícia?
Julita – Durante o levantamento, foi possível constatar que as denúncias se concentram em três itens: violência, corrupção e abuso de autoridade. No caso da PM do Rio de Janeiro, a corrupção aparece em primeiro lugar, representando quase 30% das denúncias. Em São Paulo, os casos de violência são numerosos e somam mais de um terço do total das denúncias. Em Minas Gerais, as reclamações se concentram mais na área do abuso de autoridade e correspondem a 59% das denúncias. O PM mineiro não utiliza a força física, mas desrespeita o cidadão.
ÉPOCA – A população brasileira acredita na polícia?
Julita – Não. Pesquisas feitas pelo Datafolha mostraram que, no Brasil, 59% das pessoas disseram ter mais medo que confiança na polícia. Nos Estados Unidos, essa estatística é muito diferente. Lá, 59% dos americanos confiam muito ou bastante na polícia – mesmo considerando que eles não têm os policiais mais civilizados do mundo. Outros levantamentos brasileiros mostram que a subnotificação em casos de roubo é de mais de 80%. Isso porque roubo é um crime grave, com uso de violência. Esse resultado é chocante e fruto de uma população que não confia na polícia.
ÉPOCA – Por que a população não confia na polícia?
Julita – Não confia porque acha que a polícia é incompetente, corrupta, violenta e não vai investigar mesmo. Também porque tem medo de ir à delegacia, para começo de conversa. Fizemos, durante a pesquisa, grupos focais com pessoas pobres e de classe média. Os mais pobres diziam que preferiam, mil vezes, topar com um bandido que com um policial na rua. Os de classe média afirmaram que a última pessoa que eles chamariam em uma situação de risco seria o policial.
ÉPOCA – Por que a população não recorre com maior freqüência às Ouvidorias?
Julita – As Ouvidorias têm feito mal o trabalho de divulgação de suas atribuições. Elas são muito reativas. Ficam lá, com o telefone à disposição do público, esperando que ele toque e que de lá venham as denúncias. Não é possível ficar só esperando. Recomendamos no levantamento que elas sejam mais proativas. As Ouvidorias precisam entender por que as polícias funcionam como funcionam, observar comportamentos, entender a polícia de dentro para fora. Precisam monitorar o conjunto da atividade policial e deixar de se preocupar somente com casos individuais. Por outro lado, as Ouvidorias (são nove em todo o país) são muito mal equipadas do ponto de vista material e de pessoal.
ÉPOCA – O trabalho das Ouvidorias e de quem investiga a polícia tem resultados efetivos? Qual é o tamanho da impunidade policial?
Julita – Nosso levantamento indica que 85% e 93% das queixas não resultam em nenhum tipo de punição aos policiais militares e civis, respectivamente. Tanto o Ministério Público e as Corregedorias, que são órgãos de controle internos, quanto as Ouvidorias fazem um trabalho precário. O Conselho Nacional de Procuradores da Justiça registrou, em cinco anos, 524 queixas de tortura. Os promotores transformaram os processos em inquéritos por lesão corporal. De todos esses acusados, apenas 15 foram julgados e nenhum está na cadeia ainda. Então, isso significa que quem vigia os vigias, vigia mal.
ÉPOCA – Por que tantos policiais acusados ficam impunes?
Julita – Embora a legislação diga que os ouvidores são autônomos e independentes, a realidade é outra. Isso, aliás, está longe de acontecer. A maior parte dessas Ouvidorias está funcionando dentro dos prédios das Secretarias de Segurança Pública e com ouvidores se reportando aos secretários das pastas. Isso não pode ser assim. As Ouvidorias não fazem apurações paralelas, não têm poder de investigação. Elas se tornaram meras repassadoras de denúncias às Corregedorias, que, corporativas, não têm interesse em punir. A sensação que se tem é de que, aqui no Brasil, muitos governantes mantêm Ouvidorias funcionando somente para passar a imagem de que estão preocupados em defender os direitos da população diante de uma polícia criminosa. Mas, o que se percebe, no fundo, é que não há muita vontade de tocar nesse problema.
ÉPOCA – O cidadão que oferece propina quando recebe uma multa no trânsito pode se queixar de corrupção na polícia?
Julita – Não vamos ter ilusões e achar que aí está o grande problema. Sempre dizem que existe uma parcela de culpa da sociedade, porque as pessoas reclamam da corrupção, mas compram o policial. A corrupção não vai acabar se o garoto deixar de comprar o policial porque estava sem habilitação. Esse é um problema muito maior. Precisamos cuidar do comportamento da sociedade, mas o policial-bandido está, na verdade, ligado ao crime organizado.