Os recentes confrontos nas regiões do Rio de Janeiro que já receberam Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) e o descontentamento dos moradores, que teve seu ápice com o assassinato do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza por PMs da UPP da Rocinha em junho, levantam dúvidas sobre a perenidade do modelo, implementado pelo governador Sérgio Cabral (PMDB), que deixa o Palácio da Guanabara no final do mês. Se antes as UPPs eram vistas como ilhas de tranquilidade, agora casos de violências nas comunidades ocupadas são comuns. Apenas em fevereiro, uma policial militar morreu ao ser baleada na UPP do Parque Proletário, na zona norte da cidade, e o coordenador geral das UPPs, coronel Frederico Caldas, foi ferido ao ser surpreendido por um tiroteio na Rocinha no domingo.
Para a socióloga Julita Lemgruber, primeira mulher a comandar o sistema penitenciário do Rio de Janeiro entre 1991 e 1994 e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (Cesec), o modelo não tem como se sustentar no longo prazo. Ela define a política de segurança pública do Rio como “esquizofrênica” ao pregar o modelo de polícia de proximidade em parte do território e fechar os olhos para a violência e a letalidade dos agentes no resto do Estado. “Falamos da garotada lá no Flamengo que está querendo fazer justiça com as próprias mãos, mas o que a gente não vê é que eles estão replicando um modelo que o estado desenvolve no dia-a-dia.”
Terra – O modelo de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) se sustenta para além do governo Sérgio Cabral?
Julita – A UPPs têm dificuldades de se sustentar no longo prazo seja em que governo for. Mesmo que venha um governo que se proponha a dar continuidade ao programa, a modalidade de policiamento que as UPPs propõem implica em um número de policiais muito grande. Era mais fácil quando você só tinha meia dúzia. Todo o mecanismo de controle, tanto interno quanto externo, tinha mais chance de funcionar. Crescer nesse ritmo frenético – e estamos chegando a 40 UPPs, que é a meta até a Copa do Mundo -, é preocupante. A possibilidade de controlar a violência e a corrupção diminui muito. E é o que estamos vendo. O caso do Amarildo foi o mais emblemático, mas temos visto com frequência episódios envolvendo corrupção nessas unidades de polícia pacificadora.
Terra – Qual seria a alternativa à UPP?
Julita – Já houve no passado tentativas de policiamento comunitário que tinham mais chances de dar certo, mas que foram abandonadas por motivos políticos diversos. É algo que precisa ser construído com os moradores. A UPP é um modelo que se expandiu muito rápido e sem a devida articulação com as comunidades. No Cesec fizemos um levantamento com mais de 700 policiais e o que eles mais lamentam é a dificuldade de relacionamento. Eles são vistos pelos moradores como uma força militar de ocupação, a comunidade se sente invadida no seu cotidiano. Não adianta pensar que você vai entrar com uma força de milhares de policiais em 40 áreas diferentes e vai conseguir azeitar a relação entre polícia e comunidade com facilidade. Não nesse ritmo. Por outro lado, há uma questão que, para mim, é a questão central: o Rio de Janeiro tem uma política de segurança pública esquizofrênica. Se por um lado há uma tentativa de estabelecer um policiamento comunitário, de proximidade, como o governo chama, por outro a polícia continua a funcionar da mesma maneira no resto do território do Estado. Esse episódio que ocorreu depois da morte lamentável da policial militar Alda Rafael Castilho na UPP do Parque Proletário é um exemplo. O que houve no dia seguinte? Foi uma ação de vingança. Falamos da garotada lá no Flamengo, que está querendo fazer justiça com as próprias mãos, mas o que a gente não vê é que eles estão replicando um modelo que o Estado desenvolve no dia-a-dia. Mataram a soldado, no dia seguinte a polícia foi lá e matou meia dúzia. E não importa se essa meia dúzia era bandido ou não. A polícia não tem que matar. A polícia do Rio de Janeiro é a mais violenta e a mais letal do mundo.
Terra – Ao não condenar veementemente essas mortes na UPP do Proletário e as ocorridas em outras operações, como a ação que deixou dez mortes no Complexo da Maré em junho, você acha que o governo, de certa forma, apoia essa violência da polícia?
Julita – A diferença é que hoje nem o Sérgio Cabral nem o (José Mariano) Beltrame (secretário estadual de segurança) falam abertamente que essa é a modalidade de segurança pública que eles desejam, embora no passado isso já tenha acontecido. No início do seu primeiro governo, Cabral deu força a esse tipo de estratégia violenta da polícia. Ele dizia que a polícia dele não era covarde, que enfrentava. Depois aconteceram alguns episódios e eles tiveram que voltar atrás. Hoje o governo está inclusive premiando batalhões que conseguem diminuir a violência letal e devemos aplaudir isso. Mas no cotidiano essas ações continuam a acontecer e não são suficientemente ou adequadamente punidas. Não é só a Corregedoria que é corporativa ou a Polícia Civil que fecha os olhos. É também o Ministério Público (MP) que arquiva esses casos todos como autos de resistência. Todos os atores dentro do sistema de justiça criminal tem uma participação nisso. Todos têm culpa no cartório. Se a violência letal da polícia no Rio de Janeiro não é freada efetivamente, embora já tenha diminuído, é também porque não há uma mensagem clara que isso é inadmissível.
Terra – Você acha que as formas existentes de controle da polícia são suficientes?
Julita – Evidente que não. Precisamos de um órgão externo de controle forte, autônomo e independente. As ouvidorias de polícia quando foram criadas, em meados dos anos 90, vinham de uma discussão de que o norte desses órgãos seria a independência e a autonomia. Qualquer democracia que possa se orgulhar de funcionar como uma democracia tem um controle externo da polícia forte, e nós não temos. A Constituição diz que quem faz controle externo da polícia é o MP, só que o MP faz controle do inquérito. Ele não faz o controle das ações policiais na rua, da violência, da corrupção. Essa ideia estava muito clara dentro da proposta do primeiro governo Lula, mas isso nunca se concretizou. Estamos nos encaminhando para o fim do governo Dilma e isso nunca foi trabalhado como política pública, algo com que o governo federal realmente se preocupasse. Essa é uma questão que ter que ser induzida pelo governo federal.
Terra – A desmilitarização da Polícia Militar seria um caminho?
Julita – A desmilitarização da PM é um primeiro passo que já deveria ter acontecido há muito tempo. Temo uma estrutura vinculada a todo um arcabouço legislativo da época da ditadura. As PMs como forças auxiliares do exército. Toda essa estrutura precisa mudar, mas não adianta só isso. Precisamos de uma reforma das polícias muito mais audaciosa, agressiva, que pode estar começando na medida em que a PEC 51 está tramitando no congresso. Essa PEC pretende desconstitucionalizar as polícias, dar autoridade, legitimidade aos Estados para organizar suas polícias de acordo com as suas necessidades locais.
Terra – Quanto tempo mais a UPP pode se manter?
Julita – Tudo pode acontecer. A Copa do Mundo está aí, não sabemos como será. Há no ar uma série de preocupações. Que as manifestações se tornem mais violentas, rolezinhos se multipliquem como forma também de pressão, há preocupação de que grupos dentro das unidades prisionais possam provocar situações fora dos muros… Hoje, tentar imaginar nesse futuro próximo o que vai acontecer com as UPPs, o que vai acontecer com a política de segurança do Rio de Janeiro, é muito difícil. Até porque temos eleições no fim do ano. Dependendo de quem for eleito se espera uma política de segurança que não seja esquizofrênica. Que tenha a mesma proposta para todo o território do Rio de Janeiro.