Julita Lemgruber ao FBSP, sobre segurança pública e sistema prisional

Socióloga, ex-Diretora do Departamento do Sistema Penitenciário e ex-Ouvidora de Polícia do Estado do Rio de Janeiro. Mestre pelo IUPERJ, publicou os livros Cemitério dos Vivos, Quem Vigia os Vigias, e diversos outros trabalhos sobre polícia, prisões e penas alternativas. Foi membro titular do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça. Atualmente é membro do Conselho do International Center for Prison Studies, além de conselheira e secretária da Altus Aliança Global, organizações não-governamentais com sede, respectivamente, em Londres e em Haia. Atualmente é diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro.

Julita Lemgruber pode ser considerada uma mulher de força: Já foi ouvidora de polícia do estado do Rio de Janeiro e diretora do departamento do sistema penitenciário, sendo que esta experiência se tornou um livro chamado “A Dona das Chaves: Uma mulher no comando das prisões do Rio de Janeiro”.

Em nossa entrevista do mês de julho, Julita nos conta um pouco de sua trajetória e como esta influenciou e foi influenciada pelas esferas políticas e acadêmicas.

Como você começou a se interessar pela área de segurança pública?

O interesse vem de longe. Vem dos anos 1970, época em que fazia o mestrado no IUPERJ e resolvi escolher como tema da dissertação o Talavera Bruce, penitenciária para mulheres no Rio de Janeiro. A dissertação depois virou livro – Cemitério dos Vivos, nome que as presas davam à cadeia. Em 1983, comecei a trabalhar no sistema penitenciário do Rio de Janeiro, onde fiquei por 11 anos. De 1991 a 1994, fui Diretora Geral e, mais tarde, (1999) fui a primeira Ouvidora de Polícia do estado do Rio de Janeiro. Sobre meus anos no sistema penitenciário, escrevi, com a jornalista Anabela Paiva, A dona das Chaves que foi publicado pela Editora Record em dezembro último.

Como ex-ouvidora de polícia, qual a situação atual das ouvidorias brasileiras? Houve mudanças significativas desde a época em que a senhora era ouvidora?

Lamento muitíssimo, mas a verdade é que as ouvidorias de polícia são hoje, no Brasil, um pálido reflexo do que já foram no passado. Em muitos estados, embora haja ouvidores atuando, ninguém ouve falar deles, nem de seu trabalho.

Qual o caminho que falta percorrer para que as ouvidorias sejam realmente autônomas e independentes?

O primeiro passo, atualmente, nem é a busca da autonomia e independência. Os governos estaduais precisam voltar a apostar nesta forma de controle externo da polícia. Voltar a prestigiar políticamente as ouvidorias e acreditar que esta modalidade de controle externo é vital para a cidadania. Tendo as ouvidorias recuperado seu antigo prestígio, o segundo passo é voltar a lutar por autonomia e independência. Isto será possível quando as ouvidorias puderem investigar por conta própria, de forma a cotejar suas informações com aquelas das corregedorias, e não mais estiverem vinculadas administrativamente às Secretarias de Segurança e sim diretamente aos gabinetes dos governadores. Mas, aí, tem que ter governador com disposição e coragem…

Muitas pessoas encaram o papel da ouvidoria como um espaço de luta entre sociedade civil e instituição policial. Você acha que este cenário faz sentido?

Em todos os países, mecanismos de controle externo da polícia surgiram justamente quando o prestígio das forças policiais se encontrava nos mais baixos níveis e contribuíram para que as polícias recuperassem o respeito da população. No dia em que Polícia Militar e Polícia Civil virem as ouvidorias como parceiras, teremos dado um grande passo para o fortalecimento tanto de umas, como de outras.

Qual o seu diagnóstico sobre o interesse que a sociedade dispensa aos problemas referentes à criminalidade, especialmente ao sistema penitenciário?

O interesse que existe em torno dos temas da criminalidade e da violência é muito grande. O mesmo não acontece quando a discussão gira em torno de presos e prisões. Só quando há rebeliões de grande repercussão na mídia, ou fugas espetaculares, a atenção das pessoas se volta para o tema das prisões. Do contrário, ignorar que presos e prisões existem é a regra, o que só contribui para que o tema continue quase clandestino. A parca bibliografia sobre presos e prisões no país, só corrobora o que estou dizendo. São pouquíssimos os interessados por essas questões nas universidades brasileiras.

Vendo a sua trajetória, verificamos que, em diversos momentos, você teve uma atuação de caráter político: Ajudou na mudança da legislação brasileira em 1998, desenvolveu propostas para o sistema penitenciário no projeto de segurança pública na campanha de Lula que antecedeu o primeiro mandato, em 2002, foi voluntária na campanha do presidente Barack Obama, dentre outros momentos. Você acha que essa atuação política auxilia em suas pesquisas?

É claro que auxilia, além de ser extremamente gratificante. Dos meus anos no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, ficou a satisfação de ter contribuído para o aumento da abrangência das alternativas às penas de prisão no Brasil. Em seguida, coordenei pesquisa sobre o tema, financiada pela Fundação Ford. Os meus anos de trabalho no sistema penitenciário me ajudaram a compreender o que era central como proposta para a área. Convidada por meu querido amigo, Luiz Eduardo Soares, acabei contribuindo com o capítulo sobre sistema penitenciário, no projeto do Lula, em 2002. Lições tiradas da participação na campanha do Obama, ainda vão render dividendos. Transitar em vários mundos ajuda a pesquisa. Não há dúvida.

Como ex-diretora do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, como você encara a situação prisional brasileira atualmente?

Minha principal preocupação hoje é contribuir para neutralizar a noção equivocada de que vamos resolver nossos problemas de criminalidade e violência simplesmente aumentando nossa taxa de encarceramento. O modelo dos Estados Unidos, que têm o maior índice de presos por 100.000 habitantes do mundo (750), com um total de dois milhões e meio de presos, é um exemplo para não ser seguido. Recomendaria a leitura do Bruce Western, que vem escrevendo sobre o assunto. Fiz uma entrevista com ele, publicada em O Globo no final de 2008. Segundo o professor de Harvard, o extraordinário aumento do número de presos nos Estados Unidos só explica de 2 a 5% da queda extraordinária dos índices de criminalidade, ao longo dos anos 1990, naquele país. E isto, lembra ele, custou ao contribuinte, apenas entre 1993 e 2000, cerca de 60 bilhões de dólares em gastos adicionais com os milhares de novos presos. A questão que os formuladores de políticas públicas, nos Estados Unidos, deveriam estar se perguntando, afirma Western, é a seguinte: poderíamos ter gasto estes bilhões de dólares de forma mais positiva, investindo em programas de apoio às famílias pobres, em redução dos danos do uso de drogas, criando empregos, melhorando a assistência à saúde e à educação e conseguido os mesmos resultados? Western acredita que teríamos resultados ainda melhores. Se aliam a Western outros estudiosos como Jeffey Fagan, da Universidade de Columbia, Elliot Currie, da Universidade da California e Marc Mauer do Sentencing Project.

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