Militantes negros criticam leis de drogas nos EUA e cobram inclusão

Cela superlotada na carceragem de delegacia em São José, SC

Enquanto nos EUA já se discute até a inclusão de traficantes, no Brasil ainda prevalece a pretensão de erradicar o costume milenar de usar drogas. Eis um bom resumo da conferência Reform 2017, encerrada sábado (14) em Atlanta (EUA).

A questão sobre o que fazer com os vendedores, agora que 82% da população americana vive em Estados com maconha descriminalizada (para uso medicinal ou recreativo), apareceu seguidas vezes nas apresentações dos militantes negros da DPA (sigla em inglês para Aliança de Política de Drogas), organizadora do evento.

A porta-voz mais aplaudida dessa corrente foi Michelle Alexander, autora do livro “The New Jim Crow”, sobre encarceramento em massa de jovens pretos e pardos –na maioria dos casos, portadores de drogas que a polícia presume serem traficantes. Parece familiar? Pois é.

Para Alexander, a descriminalização da maconha só ganhou impulso porque a classe média branca é grande consumidora de marijuana e porque a epidemia de opioides está matando muita gente clara, pobre ou não.

“Este movimento [antiproibicionista] está numa encruzilhada. Qualquer vitória que dependa da brancura não será uma vitória de todos nós. Recebeu uma ovação por evocar o lema “Todos Nós ou Nenhum de Nós”, do movimento de presidiários.

Ela afirmou que os países com maior diversidade racial, como EUA e Brasil, são também os mais punitivos em relação a drogas, porque elas servem para segregar os diferentes: “Nós somos programados para favorecer quem se parece conosco, é um aspecto da natureza humana”.

“Se vocês não encontrarem uma maneira equitativa de implementar essa coisa, fodam-se”, desabafou num debate o militante negro e ex-presidiário Dorsey Nunn.

FRACASSO

O argumento da DPA é que a guerra às drogas fracassou. O tráfico não diminuiu, nunca se consumiram tantas substâncias ilícitas nos EUA (49% dos adultos já experimentaram maconha), e as mortes por overdose só aumentam –64 mil em 2016.

Outro argumento é econômico: se o comércio de drogas deixa de ser proibido, o risco desaparece e, com ele, o prêmio de preço que impulsiona a criminalidade. Sumiria também o incentivo para que traficantes recorram a substâncias cada vez mais potentes e fáceis de contrabandear, pelo baixo volume.

Um contraexemplo vem de Portugal. Após descriminalizar as drogas em 2001, o país viu o consumo de drogas cair, as overdoses fatais encolherem para 3 por milhão de pessoas adultas (nos EUA são 185) e os casos de infecção por HIV associada a drogas injetáveis recuarem 94%.

Quando a droga americana da vez era o crack, sua face era negra, e os envolvidos eram demonizados como assassinos ou zumbis. Agora que se espalha a fentanila, opioide mais forte que a heroína, há mais vítimas de cor branca, e a questão passou a ser vista sob o ângulo de saúde pública, consagrando a ideia da redução de danos.

Com a liberação medicinal ou recreativa da maconha em 25 Estados, o setor emprega 122 mil pessoas nos EUA. A cannabis se tornou um negócio rentável –para brancos. São raros os empresários negros, porque não têm o capital, financeiro ou humano, para enfrentar as barreiras burocráticas e regulatórias.

Mais raros ainda são os ex-traficantes, porque várias legislações estaduais adotam uma condenação prévia como razão suficiente para negar a licença de comércio. Nos debates da Reform se defendeu o contrário, que eles deveriam ter prioridade.

PRESUNÇÃO DE CULPA

No Brasil não se disseminou o abuso de opioides como heroína e fentanila. As drogas ilegais preferidas seguem sendo maconha, cocaína e crack. A posse para uso pessoal continua criminalizada (embora a lei de 2006 não preveja prisão, só penas alternativas), mas se faculta ao juiz enquadrar o portador como usuário ou traficante.

Se o detido for pobre e escuro, tende a ser condenado como traficante; se não, sai livre como consumidor. São 160 mil os presos por tráfico no país, maioria de pretos, pardos e pobres, numa população carcerária de 584 mil (36% sob prisão provisória).

“As pessoas podem ser condenadas só por presunção”, aponta Cristiano Maronna, secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), rede de 44 organizações da área. Se for presa com drogas, cabe a ela o ônus de provar que não é traficante, lamenta o advogado, um dos 42 brasileiros na conferência.

Julita Lemgruber, socióloga que dirigiu o sistema penitenciário do Rio de Janeiro de 1991 a 1994, disse durante a Reform que é preciso começar a pensar no que acontecerá com as comunidades, como as favelas do Rio, quando a legalização avançar: “Como vamos recompensar as comunidades?”

Ela enxerga problemas tanto no modelo de comercialização do Colorado (EUA), de mercado livre, quanto no do Uruguai, controlado pelo Estado e com registro obrigatório, o que corta o acesso a usuários que preferem não ser identificados.

No primeiro caso, ficam excluídos da renda vinda das drogas os que hoje a utilizam para sustentar famílias. Os pequenos traficantes da favela estão preocupados com a legalização, disse a socióloga. E, no caso uruguaio, ela vê risco de volta do tráfico.

Lemgruber militou nos últimos sete anos no campo da reforma das políticas de drogas porque atribui a raiz da violência policial (dois mortos por dia no Rio) ao proibicionismo, que não tem futuro, mas tem alto custo social.

Estimar esse custo –juízes, policiais, penitenciárias, o valor das vidas perdidas e das aulas que não são dadas por causa de tiroteios– é seu principal projeto hoje.

ORTOPEDIA MORAL

Além da abordagem pragmática (fracasso da guerra às drogas), apresentam-se razões jurídicas para defender a descriminalização. Os argumentos levados ao Supremo Tribunal Federal por grupos como Conectas Direitos Humanos se baseiam em princípios constitucionais, como privacidade, autonomia e liberdade de expressão.

O raciocínio é liberal, antes de ser de esquerda ou de direita: não caberia ao Estado determinar o que um adulto pode fazer com seu corpo.

“Há no mundo 250 milhões de pessoas que usam drogas ilegais pelo menos uma vez por ano. Mas apenas 30 milhões fazem uso problemático delas”, diz Maronna, da PBPD, referindo-se àqueles incapazes de uma vida satisfatória, produtiva, e servem de pretexto para o que chama de “ortopedia moral”.

O secretário-executivo da PBPD vê como principal problema brasileiro, hoje, a aliança entre políticos conservadores e o lobby das comunidades terapêuticas, muitas delas ligadas a organizações religiosas. “Elas são uma tentativa de ressuscitar a saída manicomial, que vê a abstinência como única saída.” “Nós fomos o último país a abolir a escravidão. Provavelmente seremos o último a reformar a política de drogas.”

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