Proposta levanta debate sobre criminalização dos usuários e uso de substâncias ilícitas em tratamentos médicos
RIO — A Política Nacional sobre Drogas apresentada esta terça-feira pelo ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, provocou controvérsia entre especialistas consultados pelo GLOBO.
Para Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé, a medida ignora pesquisas internacionais sobre a possibilidade de desenvolvimento de novos tratamentos com o uso de drogas.
Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, Julita Lemgruber condena a promoção de abstinência, que se revelou ineficaz em outros locais onde foi testada.
No entanto, Antônio Geraldo da Silva, presidente eleito da Associação Psiquiátrica da América Latina, recebeu o texto de Terra com “surpresa e felicidade”, por considerar que o uso de drogas não tem sido suficientemente combatido pelo governo.
Leia a opinião dos especialistas:
Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé:
“A proposta é um passo para trás, que descarta estudos científicos e debates contemporâneos. Na esfera da saúde pública, poderíamos usar as drogas para investir em intervenções e tratamentos que aliviem o sofrimento dos pacientes. Contamos com conhecimento médico e experiências internacionais que mostram como estas técnicas são válidas.
A abstinência abordada pela nova proposta não deve ser encarada como uma única métrica para o tratamento do dependente químico. Trata-se de uma estratégia que não dialoga com sua recuperação e ignora a possibilidade de recaídas.
Também devemos acabar com a criminalização dos usuários. Eles não podem ser alvos da polícia, que tem outras prioridades para cumprir. O país sequer conta com um critério objetivo que diferenciaria o usuário do traficante, como a quantidade de drogas cujo porte seria permitido. A indefinição deste debate, que está parado no Supremo Tribunal Federal, contribui para o aumento da população carcerária e a precariedade do sistema prisional.
Mais de 30 países acabaram com a criminalização da droga e não houve explosão no consumo. Pelo contrário: seu uso foi até reduzido entre os mais jovens.
Nenhum projeto pode se dar ao luxo de ser elaborado sem levar em conta os avanços registrados recentemente. O texto ignora o quanto o Brasil havia progredido nas discussões sobre as drogas.”
Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes:
“É um desastre que, em pleno século XXI, alguém defenda algo tão retrógrado quanto uma proposta de abstinência. Inúmeras pesquisas mostram que o uso desta estratégia para evitar o uso abusivo de drogas costuma fracassar. O governo brasileiro está fechando os olhos para conclusões de pesquisas exaustivas, assinadas inclusive por cientistas respeitados no país.
Lamento que um ministro de Desenvolvimento Social (Osmar Terra) esteja ditando as normas da política de drogas. Não é atribuição dele ou de sua pasta. Terra rotineiramente analisa estudos sob ângulos que lhe interessa para reforçar suas afirmações. Cita, por exemplo, uma pesquisa realizada em Porto Alegre, que mostra o envolvimento de pessoas que usaram maconha em acidentes de carro. Mas, por conveniência, ele ignora que a maior parte dos acidentes fatais ocorreu por outro motivo — as vítimas estavam embriagadas. O álcool era o verdadeiro culpado.
De fato, segundo levantamentos, a maioria da população brasileira é contrária às drogas. Mas este posicionamento tende a mudar conforme mais informações são disponibilizadas. Foi um processo que ocorreu em outros países, como os Estados Unidos. Aqui, muitos já sabem que a cannabis tem propriedades medicinas. Quanto mais temos acesso a esses dados, mais as pessoas percebem que proibir as drogas é uma insensatez.”
Antônio Geraldo da Silva, presidente eleito da Associação Psiquiátrica da América Latina
“Recebo a nova proposta do governo com surpresa e felicidade, porque há muito tempo era perceptível que a população deveria ser protegida do aumento do consumo do álcool e da droga. Hoje não há qualquer controle sobre o consumo dessas substâncias, mesmo entre menores de idade. Com a nova política, observamos uma vitória das comunidades terapêuticas médicas, que investem em infraestrutura e vigilância sanitária no atendimento a dependentes químicos. Não serão mais confundidas com serviços despreparados, que não contam com profissionais de saúde responsáveis.
A população já manifestou que é contrária à legalização de drogas. Qualquer medida com este direcionamento só facilitará a disseminação de substâncias ilícitas. Não existem garantias de que a violência diminuiria. Provavelmente o tráfico manteria a força, porque venderia um produto livre de impostos e, por isso, mais barato para o consumidor. Há diversos exemplos de que liberar a maconha é uma iniciativa ineficaz — em todos os locais em que esta experiência foi realizada, a criminalidade aumentou.
O governo federal parece disposto a tentar, com as drogas, restrições severas como aquelas tomadas contra o cigarro. Foi uma medida muito bem sucedida: décadas atrás, quase metade da população fumava. Hoje, menos de 12% têm esse hábito.”