Em entrevista à Fórum, a especialista em segurança pública Jacqueline Muniz apontou os motivos pelos quais a intervenção federal no RJ não reduziu a violência e apenas aumentou o poder das milícias; “O que assistimos foi uma política econômica de produção do medo”
O último sábado (16) marcou o aniversário de um ano do decreto assinado pelo ex-presidente Michel Temer que impôs a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro. Não há, no entanto, motivo algum para comemorar.
Relatório elaborado pelo Observatório da Intervenção e divulgado na última quinta-feira (14), quando se completaram 11 meses do assassinato ainda sem respostas de Marielle Franco, aponta que a presença das Forças Armadas em conjunto com a Polícia Militar, sob o comando do general interventor Braga Neto, entre fevereiro e dezembro do ano passado, não contribuiu para a redução da violência e apenas aumentou a quantidade de tiroteios e de mortes violentas causadas por agentes do Estado. Ao todo, o governo federal destinou R$1,2 bilhão para a execução da intervenção, mas os resultados foram pífios e a população fluminense segue assustada.
Em entrevista à Fórum, a especialista em segurança pública Jacqueline Muniz, que é professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), explicou em detalhes por que a iniciativa não trouxe resultados concretos – ao menos para as pessoas – e analisou como a política de repressão viabilizada através das operações policiais em favelas faz parte, na verdade, de um projeto político, eleitoral e econômico que apenas fortalece o poder das milícias no estado.
“Isso tudo foi um apoio de campanha (…) Por isso que o que nós assistimos no Rio de Janeiro é uma política econômica de produção do medo e da insegurança para se aferir lucros milionários”, afirma.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Intervenção federal não produziu controle de territórios
“A intervenção é um regime de exceção, e como um regime de excepcionalidade, não controla nem território e nem população. Ao não administrar nem território e nem população, você tem a síndrome do cabrito, o ‘sobe e desce morro’.
As Forças Armadas estão fazendo um ‘uber’ na segurança, são improvisadas. O máximo que as Forças Armadas conseguem fazer de trabalho de polícia aqui são operações. A Polícia Militar, por sua vez, o máximo que consegue se aproximar de uma guerra é fazendo operações. Ou seja, nem polícia nem Forças Armadas estão fazendo policiamento. A PM há muito tempo abandonou o trabalho de policiamento que é enfadonho, monótono, rotineiro, de baixa visibilidade. E é isso que funciona. É o cotidiano, isso que permite a administração de territórios e populações.
Moral da história: com as Forças Armadas se improvisando, só há duas coisas a se fazer: sucessões de operações e patrulhamentos monitorados.
Com a fantasia da guerra contra o crime, gradualmente a polícia foi abandonando suas práticas de policiamento em favor de operações. E isso é uma decisão política. E que o político busca? Publicidade, visibilidade. E tudo que a polícia pode fazer de visibilidade, palpável aos olhos da população, são operações. Todo o resto que a polícia faz é de baixa visibilidade. Inteligência, investigação, patrulhamento…
Nas modalidades de emprego de recursos policiais, o que tem mais visibilidade e concretude aos olhos da população são as operações, porque elas envolvem um teatro operacional. Elas mobilizam recursos efetivamente repressivos”.
Marketing político e publicidade macabra: falta policiamento nas ruas
“As operações têm um efeito de marketing, são publicidade macabra. Que visa reforçar duas lógicas: dos senhores da guerra e dos mercadores da proteção.
Houve mudança na geopolítica do crime com a intervenção? Não. A cocaína ficou mais cara? Não. Os serviços essenciais que são as mercadorias políticas do crime, a TV a cabo, o gás, a luz, todos esses serviços essenciais que são terceirizadas para o crime, esses serviços foram retomados pelo poder público? Não.
A razão de ser da operação é exatamente produzir um efeito pontual no tempo e espaço. E ela mobiliza um volume imenso de recursos. Uma operação que diz que mobilizou 300 pessoas, que é a média, mobilizou, na verdade 1200. Pois dura 24 horas, você tem três turnos e a cobertura da folga. Então, conta de efetivo tem que multiplicar por 4. Isso quer dizer que para cada operação você produz escassez de patrulhamento na esquina. Entendeu por que os crimes de rua, os crimes de oportunidade seguiram patamares elevados? Assim como os homicídios?
Os objetivos não foram alcançados por uma razão básica: eles não produziram controle nem sobre território, nem sobre população, sobre fluxo. Esse teatro operacional produz escassez de policiamento.”
Fortalecimento das milícias
“O problema da dispersão das práticas criminosas tem a ver com as disputas territoriais do Rio de Janeiro. Tanto é que mantivemos uma taxa alta de tiroteios, de balas perdidas. Essa brincadeira de sobe e desce morro reduziu a capacidade criminosa das organizações ou apenas redistribuiu território? Pois a milícia cresceu. A milícia é o Estado do B. É a polícia dos bens, e não do bem. Feita de atores do Estado. Então, tira o traficante de estimação e entra o miliciano? O que assistimos no Rio de Janeiro é um crescimento das milícias que hoje, se fala por aí, ultrapassou os 40% do controle territorial.
Pergunta: A milícia reduziu sua atividade? O controle territorial da milícia encolheu? Os grupos criminosos reduziram sua atividade? Não. Como sabemos isso? Através dos valores de suas mercadorias criminosas, que não é só a droga. A droga é uma espécie de poeira diante do que se afere economicamente como o controle da luz, por exemplo. Luz na favela é fazer a água chegar, a atividade econômica chegar. Ninguém fica sem luz na favela. Ninguém fica sem gás. Sem água. Esses serviços são públicos, mas a população da favela paga duas vezes: paga para o estado e paga para o crime. Isso mudou? Não. Essa é a economia milionária que serve de caixa 2 para as campanhas eleitorais no Rio de Janeiro faz tempo. Elegendo senadores, deputados, governadores…
Se a questão era o enfrentamento ao chamado crime organizado, não se mudou esse status quo. Na verdade, o que houve foi uma redistribuição. Tirou um território que era do Comando Vermelho e deu para a milícia. O que se assistiu foi uma dança de cadeiras, redesenhando um novo tratado de Tordesilhas no estado. A unificação, por um lado, do crime pela milícia, e de outro do crime pela ascensão de monopólio do PCC, chegando no Rio de Janeiro. Estamos diante de uma possibilidade de um novo tratado de Tordesilhas. Então, não é brincadeira.
Tratou-se de um comercial macabro, publicitário, que visava produzir resultados eleitorais.
Você vê que morte de policial é palanque. Nós assistimos de novo à vitimização elevada e a letalidade policial elevada por uma razão básica: quem administra morte é o Estado. Ele pode fazer isso reduzindo mortes, mantendo mortes ou aumentando mortes. Então, para mim, o resultado é previsível. Não teve controle de território.
E mais, um ilusionismo: achar que pode sustentar uma ação repressiva indefinidamente. É impossível. Se em cada operação você mobiliza todos esses recursos você vai passar dias sem garantir a cobertura ostensiva, o patrulhamento ostensivo em toda a cidade, toda a região metropolitana, porque você exauriu recursos. Segurança é movimento, é controle de fluxos. Não adianta você ser soldado de chumbo, sentinela de boate, que não vai produzir segurança. Foi substituída a rotina do policiamento pelas operações. Porque são altamente visíveis, valorizam a economia criminosa e se potencializa a disputa entre grupos criminosos. Então, se abre espaço para toda sorte de negociatas ilegais e de uma promiscuidade típica do Rio de Janeiro que é governar com o crime e não contra o crime. Então, a despeito da boa vontade e da boa intenção, era previsível e eles sabiam.”
Política do medo
“E aí vai comemorar o quê? A opção que eles fizeram era uma opção impossível de ser sustentada aqui ou em qualquer lugar. As Forças Armadas sabem que só se ganha uma guerra com controle de território.
Uma cidade que naturalizou a existência de dois aplicativos que avisam onde está tendo tiroteios, é complicado. Tiroteio maximiza o medo. Daí as balas perdidas que, na verdade, são balas achadas. Depois tem os crimes de rua, os crimes de oportunidade, o assalto da esquina a que todos estamos expostos. Tudo isso segue em patamar elevado e em movimento ascendente. E esses são os crimes que mais aumentam a percepção de medo, porque são crimes que acontecem no espaço público. Todo mundo tem medo de sair na rua. E é exatamente isso que eles fizeram. Isso que eles fizeram se trata de produzir insegurança. Quanto mais insegurança menor a capacidade do sujeito de produzir coesão e ação coletiva, o medo é péssimo conselheiro. Você vai buscar o salvador de ocasião. Só que seu salvador de hoje será seu tirano de amanhã.
A capacidade de gestão dos recursos foi razoável? Não. Controle das mortes? Não. Você teve uma redução de 6% de homicídios e por outro lado você teve o aumento da capacidade de matar. Então, na verdade, subiu o risco de morte violenta.”
Intervenção para quem?
“Isso tudo foi um apoio de campanha. É fácil se produzir ‘sucessos’. O difícil para segurança é produzir resultados para além do curto prazo, para além do espetáculo. E esse espetáculo é produzir medo na população, valorizar a arma, levar o cidadão a acreditar que é cada um por si e Deus por todos.
Agora, com esse mesmo R$1 bilhão, era possível qualificar todos os policiais de todo o país com padrão de tiro, coisa que a polícia brasileira não tem. Com esse mesmo dinheiro se poderia qualificar toda a polícia brasileira para que ela parasse de errar. É uma vergonha bala perdida. O que se está comemorando? Está se comemorando resultados eleitorais.
Com esse dinheiro era possível fazer treinamento para que eles [policiais] se sintam qualificados na tomada de decisão em tempo real, em situação de risco. Por modalidade de armamento e modalidade de tiro. Para que mesmo a polícia serve? Aí depois ficam confundindo metralhadora com guarda-chuva. É de um amadorismo.
Os homicídios seguiram altos, mortes altas, os crimes de rua altos e com incapacidade de gestão.
Isso tinha um propósito. Nesse ponto de vista, a intervenção foi eficaz. No ponto de vista político, que era sua meta, um marketing político e um comercial macabro, dos brinquedos de guerra, etc. Sob esse aspecto foi bem-sucedida. Para produzir resultados em segurança pública, sinto muito, não há o que comemorar. E é preciso que cobremos isso. Vamos ficar brincando disso até quando? Até quando as pessoas serão reféns do medo? O discurso do medo pauta tudo. Deixa as pessoas reféns do miliciano simpático, do musculoso da esquina.
A memória acumulada de violência produzida pela guerra que é uma versão da lógica da vingança faz com que o policial animado seja aquele que assina sua sentença de morte quando mata. Por isso que o que nós assistimos no Rio de Janeiro é uma política econômica de produção do medo e da insegurança para se aferir lucros milionários. Você sabe quanto custa a banda larga na Rocinha? A luz? A distribuição? Você acha mesmo que as bocas de fumo vão ficar vivendo de pó de mármore? É só isso? Evidente que não. O que está em jogo é a terceirização dessas mercadorias políticas que são os serviços essenciais no estado.
Constatamos mais uma vez que o propósito era outro. Então, sob esse aspecto, a intervenção foi bem-sucedida.
O medo no Rio de Janeiro tem alavancado carreiras políticas, tem rendido milhões, tem financiado o crime. O desafio no Rio de Janeiro é político, não é criminal.”