Negros são os mais abordados pela polícia no Rio em qualquer situação, diz pesquisa

Policias fazem ronda na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio, após ocupação pelo programa Cidade Integrada - Tércio Teixeira - 26.jan.22/Folhapress

Pretos e pardos representam 48% da população carioca, mas são 63% das pessoas paradas por agentes

RIO DE JANEIRO
Na rua, na praia, no carro, no transporte público, na moto, no táxi, na festa. Não importa a situação, negros são o grupo mais abordado por policiais na cidade do Rio de Janeiro, e também os que mais sofrem abusos ou constrangimentos nessas ocasiões, concluiu uma nova pesquisa.

Pretos e pardos representam 48% da população carioca, mas são 63% das pessoas que dizem já terem sido paradas para revista, aponta o relatório “Elemento Suspeito”, lançado nesta terça (15) pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec).

Para o levantamento, o Instituto Datafolha falou com 3.500 pessoas em “pontos de fluxo” da capital nos dias 4 a 6 de maio de 2021, das quais 39% afirmaram já terem sido abordadas por agentes. Entre essas, foi escolhida uma amostra de 739 entrevistados, representativa do município.

Depois, para uma etapa qualitativa, os pesquisadores conversaram com grupos formados por jovens moradores de favelas, jovens brancos, entregadores, motoristas de aplicativos, mulheres e policiais militares. Foi a segunda vez que esse estudo foi feito; a primeira havia sido em 2003.

Procurada para comentar os resultados, a Polícia Militar fluminense, responsável pela grande maioria dessas ações, respondeu que “não há qualquer viés racial na sua atuação e sua missão de combater criminosos armados” e que segue protocolos rígidos de atuação.

Negros são os mais abordados pela polícia no Rio em todas as situações

A pesquisa afirma que, além da cor, o gênero, o local de moradia, a renda e a idade também têm grande influência nas abordagens policiais: 75% dos alvos são homens, 66% vivem em bairros periféricos ou em favelas, 60% ganham até três salários mínimos e 48% têm até 40 anos.

Mostra ainda que quase um quinto dessas pessoas (17%) já foi abordado mais de dez vezes na vida, percentual que dobrou nessas quase duas décadas. O perfil dos “superabordados”, ou popularmente chamados de “freios de camburão” e “mestres do enquadro”, é ainda mais acentuado.

Homens pobres e de periferia também são a maioria dos abordados

“Quando entrevistamos jovens negros de favelas a gente percebe. É um ‘carma’ de uma parte da sociedade. Por outro lado, homens brancos com mais de 40 anos e ganhando mais de dez salários mínimos quase não são parados”, diz a socióloga Silvia Ramos, coordenadora das duas pesquisas.

Para exemplificar, o estudo traz algumas falas de jovens que participaram: “Dia que não sou parado, chego em casa e acho até que aconteceu algo estranho”, diz um entregador. “Eles tentam imprimir que a gente é o suspeito. A gente acaba até duvidando da própria honestidade”, afirma outro.

Os dados remetem ao caso recente do estudante Yago Corrêa, 21, preso no último dia 6 enquanto ia comprar pão de alho na favela do Jacarezinho, na zona norte carioca. Ele foi solto depois de dois dias, quando as câmeras de segurança o mostraram saindo da padaria.

Os locais apontados como mais comuns nas abordagens policiais são em carro próprio ou de outros (63% vivenciaram isso) e a pé na rua ou na praia (55%). Essa última modalidade se intensificou no intervalo de 18 anos, assim como as revistas em motos, enquanto as outras diminuíram ou ficaram estáveis.

A comparação entre os dois levantamentos mostra também que situações violentas ou constrangedoras se tornaram mais comuns nas últimas décadas. Aumentaram as porcentagens de pessoas que viram uma arma apontada para si e sofreram ameaças ou intimidações, além das que passaram por revista corporal.

Por outro lado, diminuíram os relatos de tentativa de extorsão ou agressão física. Em quase todas essas situações de abuso, os negros são os mais atingidos —32% dos pretos e pardos abordados dizem ter tido a arma apontada em sua direção, por exemplo, contra 21% dos brancos.

“Homens e mulheres relataram que, além da revista corporal, policiais às vezes procuram drogas nos cabelos, isto é, nas tranças afro e nos dreads […]. Quando contam as múltiplas experiências vividas, vários relatam já terem sido tratados com agressões verbais ou desrespeito, e terem tido o celular invadido para verificar galerias de fotos e mensagens com algum conteúdo ligado a facções”, diz o relatório.

Revista pessoal, uso da arma e intimidações aumentaram em 18 anos

O estudo chama a atenção para o fato de que, nessas quase duas décadas, surgiu um elemento novo que foi a consciência e o reconhecimento do racismo por negros e brancos. Segundo os dados, 29% citaram diretamente o preconceito como motivo de ser abordado uma ou tantas vezes.

A raça se reflete também em outras experiências dessas pessoas com a polícia: metade dos negros diz já ter presenciado agentes agredindo alguém, ante 38% dos brancos, e cerca de um quarto afirma que já teve sua casa revistada, ante 12%. Aqui, quanto mais escura a cor da pele, mais alto o percentual.

Quase metade já presenciou agressões e um terço teve conhecido ferido ou morto pela polícia

O estudo ressalta os impactos dessas situações na vida e no emocional das pessoas. Todos os jovens ouvidos na pesquisa qualitativa, por exemplo, citam que já ouviram recomendações da mãe para não sair sem documento.

“Foi possível perceber que as abordagens têm um efeito prolongado sobre a vida dos sujeitos entrevistados, provocando mudanças no comportamento, na escolha dos trajetos, nos horários de trabalho e de lazer, na forma como se vestem ou utilizam seus cabelos e acessórios”, escreve o pesquisador Diego Francisco.

Há um claro descompasso entre como os policiais e os abordados veem as revistas, aponta a pesquisa. Enquanto praças negros da PM definem as abordagens com as palavras “eficiência”, “trabalho”, “risco” e “essencial”, jovens brancos e negros falam em “medo”, “corrupção”, “raiva” e “ranço”.

Todos esses dados repercutem numa má avaliação principalmente da Polícia Militar —45% dos entrevistados pretos, 28% dos pardos e 23% dos brancos deram nota menor que cinco à corporação. No total, apenas 3% consideram a PM nada corrupta, 7%, nada violenta e 17%, nada racista.

Por último, o levantamento aponta que a grande maioria dos abordados concorda total ou parcialmente que as operações policiais em favelas são necessárias para combater criminosos, mas também que elas deveriam ter cuidado para não matar ou ferir qualquer pessoa (81% e 84%, respectivamente).

Em resposta ao estudo, a Polícia Militar fluminense afirmou que suas ações “são baseadas em protocolos rígidos de atuação e preceitos técnicos de treinamento e orientação. Um dos objetivos exponenciais da PM é a preservação de vidas, sejam elas as da população em geral ou as dos policiais envolvidos nas ações”.

A corporação acrescentou ainda que a maioria de seu contingente “vem das classes de base da sociedade, incluindo as comunidades carentes, o que torna os policiais parte do contexto estrutural, histórico e social em que atuam”.

Ressalta também que foi uma das primeiras instituições públicas do país a ser comandada por um negro e que hoje mais da metade de seu efetivo de praças e oficiais é composto de afrodescendentes.

Visualizar matéria

versao para impressão

Mais Reportagens