O que leva os meninos do Rio para o tráfico?

Estudo promovido pela Unicef e coordenado pela cientista social Silvia Ramos – coordenadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Cidadania (Cesec), da Universidade Candido Mendes – intitulado “Meninos do Rio: jovens, violência armada e polícia nas favelas cariocas”, lançado nesta segunda-feira no Rio de Janeiro, responde uma pergunta, até então, feita cotidianamente, sob uma forma diferente: por que crianças e adolescentes entram para o tráfico?

A resposta, muitas vezes respondida de forma automática, era: “por causa do dinheiro”. Sim, este já foi um “porquê” louvável, mas o tempo passou e as determinantes para o ingresso de crianças e adolescentes no trafico, também. O estudo mostra que sexo e poder são os principais atrativos para recrutamento de jovens para o tráfico e que dinheiro fácil é coisa do passado, bem como as chamadas causas-clássicas (famílias desestruturadas, falta de dinheiro, pais violentos, parentes envolvidos no tráfico).

A proposta central de “Meninos do Rio” baseia-se na idéia – de pertinência já mais que comprovada, mas nem sempre devidamente aproveitada – de que a busca de soluções para os problemas sociais passa necessariamente pela escuta e pelo diálogo com aqueles que mais sofrem seus impactos.

O estudo comprova empiricamente o que muitos estudiosos da segurança pública vêm repetindo há algum tempo: os aspectos simbólicos. Uma arma pendurada na cintura de um garoto de 10 anos faz dele um “homem respeitado” e desperta nas “meninas” a admiração pelo que ele representa na comunidade. Quando escrevo “na comunidade”, é porque a grande maioria das pessoas que moram em comunidades não são reconhecidas como cidadãos no asfalto. Muitos deles não tem sequer um endereço. É nesse ambiente que os signos (no caso, a arma na cintura) ganham um significado exacerbado. A psicologia social, que faz uma ponte entre a psicologia e a sociologia, há tempos vem batendo nessa tecla, uma vez que o comportamento dos indivíduos, quando estão em interação com o meio – no caso, dinâmicas da violência armada -, sofrem interferências deste.

O estudo, ao deslocar o foco do dinheiro para valores intangíveis, mostra que a maneira como se costuma tratar a questão da violência deve ser repensada. As abordagens devem focar no controle da violência e em sua prevenção com base na reconstrução do capital social, combinando diferentes perspectivas. A política do “enxugar gelo” há muito se mostra ineficiente, e atrasa a evolução democrática no país como um todo. É preciso ouvir aqueles que estão, de fato, envolvidos no processo, para traçar a melhor estratégia de ação, aliando profissionalismo, gestão, pesquisas e a experiência do dia a dia daqueles que convivem com o tráfico.

Mudança de foco

O estudo traz depoimentos que traduzem bem o que se passa:

Tem favela tão pobre que nem a milícia quer!
(liderança cultural de jovens de favelas)

Com certeza, eu trabalhando no sinal ganho mais dinheiro do que vagabundo que trabalha no morro. Não só os novinhos não, tô falando de gerente.
(ex-traficante, atualmente em uma cadeira de rodas)

Ah, sei lá porque entrei. Poder, eu acho. Ninguém ia tirar contigo (…) nem era admiração pelos caras, era pelas armas.
(ex-traficante)

É a idade, é empolgação, é adrenalina, é um querer de um poder.
(mãe cujo filho foi morto em operação policial)

Todos os adolescentes são candidatos (a entrar para o crime). Eu olho no baile funk a exibição dos fuzis e me vejo na minha adolescência na Inglaterra. Eu era como um daqueles meninos, queria ser aceito, entrar para a turma, queria atrair as meninas.
(Damian Platt, pesquisador e escritor)

Por quê?

Não que o dinheiro não seja mais atrativo, mas o estudo indica que isso não é sempre determinante. A pesquisa revela, como já exposto por estudiosos, que há uma certa “crise do tráfico”. Dentre as razões apontadas pelo estudo, estão:

  • As vendas no varejo nas favelas atendem principalmente a um mercado interno, com menor poder aquisitivo, e não mais a compradores de fora ou de classe média, que deixaram de ir às favelas por causa da violência dos próprios traficantes e da polícia;
  • Ingresso no mercado de drogas sintéticas, especialmente o ecstasy, que seriam importadas e chegariam aos consumidores sem passar pelas favelas;
  • A cocaína, droga altamente rentável, teria encerrado seu império devido aos prejuízos provocados pela contínua e crescente intervenção da polícia, seja em operações de confronto, seja em extorsões;
  • A chegada do crack às favelas cariocas, especialmente nos últimos três a quatro anos, e a necessidade de oferecer mercadoria compatível com o pequeno poder aquisitivo de parte de seus consumidores;

Além da necessidade financeira e do desejo de visibilidade, as razões que mais foram citadas no trabalho com os grupos focais que participaram do projeto foram: ter vivido uma situação de injustiça (por parte da polícia, na escola, dos amigos ou de outros jovens); ter alguém da família envolvido no tráfico; família desestruturada, ausente; não ter perspectiva de futuro.

Sexo e poder

Muitas pessoas da classe alta, tipo assim Zona Sul, eles vão pra favela pra curtir. As patricinhas descem do condomínio luxuoso, vão pra favela e olham o vagabundo sem camisa, com a arma, todo suado, fedendo, aí dizem “é o príncipe de todos os meus sonhos”.
(jovem de projeto)

O menino não tem nada, onde cair morto, mas sabe quantas mulheres ele tem? Quantas ele quiser. Dependendo da arma, mais mulher tem.
(mãe de adolescente cumprindo medida)

O chamariz do trafico, hoje, tem basicamente dois pilares: sexo e poder. Não é novidade o fato de uma garotinha moradora do asfalto se “encantar” pelo traficante do morro e se mudar pra lá de mala e cuia. São as “Maria Fuzil”, encantadas pelo poder que seus companheiros esbanjam, pela proteção que passam a ter e pelo respeito dispensado à agora “senhora dona do morro”. E foi exatamente isso que o estudo detectou: muitos são os depoimentos que mencionam o “virar bandido” e “usar armas” com “conseguir meninas” e “ser olhado, reconhecido, desejado”.

Reflexão

“Uma parte de defensores históricos do Estatuto da Criança e do Adolescente tende a pensar nos adolescentes exclusivamente como “vítimas” e “portadores de direitos”, e os agentes de segurança e justiça criminal tendem a pensar nos adolescentes apenas como “problemas”, numa construção que os criminaliza, especialmente se forem pobres e viverem nas favelas. É necessário encontrar um ponto de articulação de olhares, metas, programas e compromissos que seja capaz de dialogar com os diversos campos, o que tem sido raro no Brasil.”

Muitos são os “porquês” apontados pelo “Meninos do Rio”. Não que outras entidades e profissionais respeitados não tenham levantado esta lebre, mas o Brasil tem uma triste mania de se comover e esquecer rápido demais. Foi assim com o documentário do MV Bill – “Falcões: Meninos do Tráfico” – exibido em horário nobre em pleno domingo. Todos ficaram alarmados. A semana passa e o cotidiano esfria as urgências.

Se quisermos, de fato, ver o problema da segurança pública resolvido, não há “depois” e nem “vamos ver”. O tempo é agora.

Cecília Oliveira é jornalista e especialista em segurança pública e gestão pública

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