Ponte de (re)percussão

Quando a banda de percussão da Polícia Militar Mineira começa a tocar um som que tem a marca do AfroReggae, se vê que a idéia desse pessoal, de fazer alguma coisa com a polícia, deu certo. Há muito deixaram de ser uma banda, para ser uma empresa social que se dedica a um tipo inovador de ativismo sócio-cultural. Uma espécie de guerrilha urbana que usa as armas da inteligência e da inspiração para interferir na guerra que lambe os morros do Rio de Janeiro. A socióloga Sílvia Ramos, que tem se dedicado ao estudo da sociologia criminal e da polícia, conta como começou essa idéia de fazer uma invasão pacífica dos quartéis:

– O José Júnior me procurou dizendo “Nós do AfroReggae queremos fazer alguma coisa com a polícia”. Aí, eu respondi: vocês querem fazer alguma coisa contra a polícia, né? E ele disse “Não, com a polícia”. Foi então que entendi, e surgiu o projeto de aproximar juventude e polícia por meio da invasão cultural dos quartéis.

Registramos, aqui, no comecinho de O Eco, no Salada Verde, o início desse projeto. Um dia, atravessando o saguão de um dos melhores hotéis de Belo Horizonte, havia uma porção de rapazes negros nos sofás, em animada conversa. De repente, o Júnior saiu do meio de um grupo para me cumprimentar. Estavam lá para lançar uma idéia de paz, que o governo Garotinho recusara. O projeto tinha por objetivo melhorar o ambiente de convivência entre jovens negros e polícia, mudando o clima do relacionamento nas ruas e, principalmente, nas ladeiras das favelas.

Esse jogo de palavras, para justificar uma nota desse tipo em uma publicação ecológica, é mais do que só uma justificativa semântica. Ele reflete minha convicção sociológica de que a noção de meio ambiente só faz sentido se englobar os ecossistemas naturais e aqueles construídos pelo ser humano. A idéia de sustentabilidade vale para os dois e tem a ver com o bem-estar humano, hoje e das próximas gerações. Não faz sentido defender a paz na mata, a sobrevivência das onças e dos muriquis e não se indignar, envolver e tentar modificar o ambiente urbano que vem dizimando os jovens humanos do sexo masculino.

Os números dessa tragédia ambiental são eloqüentes: a taxa de homicídios por 100 mil habitantes para pessoas de todas as idades, no Brasil, é da ordem de 28. Mas, a taxa de mortalidade por homicídios entre as pessoas de 15 a 24 anos, de ambos os sexos, já é de 55 para o Brasil, de 56 para o estado do Rio, de 59 para as capitais brasileiras e de 63 para a cidade do Rio de Janeiro. Altíssimas. Contudo, nas capitais, para jovens do sexo masculino entre 15 e 24 anos, essa taxa atinge níveis muito mais preocupantes ainda, de áreas em guerra civil: 95 por 100 mil habitantes. No estado do Rio de Janeiro, é pior a situação: 119 por 100 mil. E, na cidade do Rio de Janeiro, é uma catástrofe: 145. Coisa para ser comparada a Bagdá ou Beirute, em guerra. Mas o absurdo não pára aí. A taxa de mortalidade por causas violentas entre os jovens negros, do sexo masculino, é de espantosos 194 por 100 mil e, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, de inimagináveis 498 por 100 mil. E por trás das armas que matam esses jovens está, com freqüência amplamente majoritária, a polícia.

 

Polícia mineira

É nesse front que a rapaziada do AfroReggae decidiu atuar. José Júnior, porta-voz do grupo, diz, com todo o charme, que essa é uma escolha de vida da rapaziada. “Hoje, eu podia fazer outra coisa. Com todos os contatos que eu tenho, podia parar de me arriscar. Mas eu não quero me aburguesar, deixar de me importar, me envolver. Essa é a nossa vida”. A vida nas “faixas de Gaza”, criadas por essas cisões que marcam nosso ambiente urbano como inóspito e ameaçam de extinção os machos jovens, principalmente os de cor negra, da família urbana da espécie humana. Que eu saiba, o AfroReggae é a principal e mais bem-sucedida sociedade protetora dos indivíduos ameaçados dessa espécie.

O projeto foi levado para a polícia de Minas Gerais e muito bem recebido. Ele nasceu de uma constatação simples: para a polícia, jovem negro, sobretudo de favela, em princípio é bandido. Para o jovem negro, sobretudo de favela, policial é, no mínimo, violento e, com grande freqüência, matador. Os casos de violência policial estão registrados na crônica diária da vida urbana brasileira e suas marcas estão nos corpos e nas mentes de muitos dos integrantes do AfroReggae. A trajetória dessa iniciativa de “fazer um trabalho com a polícia”, em Belo Horizonte, está no mais recente documentário do AfroReggae, Polícia Mineira, no qual Paulo Negueba conta como foi que levou um tiro de fuzil no pé, durante uma entrada da polícia na favela, atirando a esmo e no que via. No caso, viu o pé calçado com tênis branco de Paulo.

Polícia mineira, para quem não sabe, é a designação dada, em Vigário Geral, à polícia violenta, matadora. Nos corações e mentes dos jovens das favelas brasileiras, toda polícia é, nesse sentido, mineira. O que o documentário do AfroReggae mostra é como a rapaziada trabalhou para fazer com que a Polícia Militar de Minas Gerais começasse a deixar de ser mineira na violência e ficasse só com as virtudes da mineiridade. Mineira, só por ser de Minas. Para um mineiro como eu, pelo menos, ver a tenente-coronel Luciene, falando com seu jeito mineiro de ser, ao longo do documentário, dá para entender porque lá o projeto de aproximação com a rapaziada foi bem recebido e, uma vez implantado, teve tanto sucesso. Por lá, eles ainda não haviam perdido completamente a doçura. Por isso, encontram um garoto, de seus oito anos, que, perguntado, responde que quando crescer quer ser polícia.

No Rio, em Favela Rising, outro esplêndido documentário do AfroReggae, um menino de seus dez anos responde a esta pergunta de Anderson Sá, com raiva, dizendo que quer ser bandido. Não vai ser. O AfroReggae já ganhou seu coração e sua mente.

Mas, ninguém é bobo. Polícia continua a ser polícia em um ambiente institucional e social corrompido e violento. O menino que quer ser polícia quando crescer, diz, primeiro, que é “para prender quem eu não gosto” e, só depois, alertado pelas reações, diz que “é para prender ladrão também”. Anderson pergunta se ele queria ter um uniforme daqueles e um binóculo. Ele, acanhado, faz que sim com a cabeça. Quando o policial pergunta se ele quer olhar pelo binóculo, não dá para não perceber, seu primeiro olhar é de amedrontada desconfiança. Depois, a curiosidade vence o medo e ele pega o binóculo e, acanhado, diz “Ããh”. 

 

Tô bolado!

É preciso mais que esses guerrilheiros da pacificação, invadindo culturalmente os quartéis da PM e fazendo o pessoal largar as pistolas 9mm para pegar nas baquetas de percussão. Ou largar a máscara de homem mau e vestir a fantasia de palhaço. Ou deixar de ser durona e cair no samba-reggae. É preciso uma ação coletiva, abrangente e radical para mudar completamente esse ambiente e recolocar a polícia a serviço da comunidade.

Polícia Mineira é um documentário estilo AfroReggae, direto, comunicativo, transparente. Tem uma força que sai da forma desabrida e tranqüila como essa rapaziada enfrenta as barras mais pesadas e da franqueza simples e sem ressentimento com que conta tudo que já passou, nessas fronteiras conflagradas do Rio de Janeiro. Eles não fazem diplomacia. Estão lá para mudar o ambiente e o clima. E não têm papas na língua. É por isso que, quando Anderson Sá salta no palco do batalhão da PM e dá seu grito de paz, “Eu tô bolado!”, em seguida, canta:

21 moradores assassinados
pelo ódio e a violência
de policiais vingadores

essa crueldade aconteceu
porque no dia anterior
traficantes mataram 4 policiais

não entendo este mundo
me disseram que a polícia
é um órgão existente a proteger o cidadão
mas o que já foi relatado é o contrário
a proteção aqui não houve
houve sim a covardia, burrice, deslealdade,
insolência e falta de caráter e não existem
palavras no mundo para esta atitude imbecil

eu tô bolado…

O documentário Polícia Mineira, produzido por Leo Martinez, foi dirigido por Estevão Ciavatta. Poderá ser visto nos festivais e, se emplacar premiações, algum canal de TV a cabo pode se interessar e levar ao público essa mensagem de paz. Favela Rising, o primeiro, que documenta a história e a saga do AfroReggae, foi escolhido um dos cinco melhores documentários de 2005, pela International Documentary Association.

Polícia Mineira é uma forte, bela, tocante e diferente mensagem de paz, sem as apelações comerciais, o sentimentalismo boboca e as espécies exóticas da maioria das mensagens natalinas que circulam por aí.

Desejo a todos um Feliz Natal, que ainda não será de paz, nem no Brasil, nem no Rio, nem no mundo, tampouco na Amazônia, mas que seja de muita esperança de paz. Como diz a rapaziada do AfroReggae, “não acreditamos em caso perdido”. O menino que queria ser bandido, e não vai ser, que o diga.

(Texto reproduzido com autorização do autor)

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