Política proibicionista, além de ineficaz e “justificar” massacres nas periferias, custa bilhões aos cofres públicos. Gastos do Rio poderiam custear 32 mil vagas na universidade pública. Os de SP, Renda Básica para meio milhão de famílias
Quanto custa proibir? Essa é a pergunta que o CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) respondeu na primeira fase da pesquisa inédita “Um tiro no pé: Impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo”, lançada nesta segunda (29/3).
Quem encabeçou a pesquisa foi Renata Neder, coordenadora do CESeC, formada em Geografia pela Universidade Federal Fluminense, com especialização em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A ideia, porém, surgiu do trabalho da socióloga Julita Lemgruber, especialista em segurança pública, ex-diretora do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, entre 1991 e 1994, e ouvidora da polícia no Rio, entre 1999 e 2000. “Com o passar do tempo ela percebeu que é impossível falar de política de segurança pública ou de uma outra política pública sem falar de política de drogas”, aponta Renata.
Nas 64 páginas do relatório, o CESeC destrinchou o cálculo do custo, em valores reais, da proibição das drogas, segurança pública e justiça criminal (composto por Polícia Militar, Polícia Civil, Defensoria Pública, Ministério Público, Tribunal de Justiça, Sistema Penitenciário e Socioeducativo) no Rio de Janeiro e em São Paulo no ano de 2017, mostrando como essa política impacta na vida dos moradores de favelas e periferias.
O projeto também destrincha o racismo estrutural por trás da guerra às drogas e o quanto essa é a face mais violenta da proibição. Entre 2015 e 2019, de acordo com a pesquisa, o Rio de Janeiro gastou uma média anual de 15 bilhões de reais com o sistema de justiça. Já São Paulo, teve um gasto médio por ano de 44 bilhões de reais.
Em 2017, o maior investimento, nos dois estados, foi na Polícia Militar. No Rio de Janeiro o número foi equivalente a 32,33% do orçamento total, com quase 5 bilhões de reais, e em São Paulo o investimento correspondeu a 36,3% do orçamento, cerca de 16 bilhões de reais.
Um dos maiores desafios do projeto, conta Renata, foi obter os dados do estado. “Nos deparamos com duas ordens de problema: falta de transparência de instituições que tinham o dado, produzem o dado, mas demoraram um ano para responder. É uma verdadeira batalha. Também tem um problema de outra ordem que algumas instituições não produzem dados ou não produzem dados de qualidade”.
O montante gasto nos estados de Rio de Janeiro e São Paulo, em 2017, para manter a proibição das drogas é impressionante: 5,2 bilhões. Só em São Paulo foram gastos 4 bilhões de reais.
Para se ter uma ideia, com o bilhão investido no Rio de Janeiro para essa política, seria possível custear a educação de 252 mil alunos do ensino médio, construir 121 escolas para mais de 77 mil alunos, custear um ano inteiro de ensino para 32 mil alunos na UERJ, e beneficiar 145 mil famílias por um ano em programas de renda básica, além de comprar 36 milhões de doses da vacina AstraZeneca, suficientes para vacinar 18 milhões de pessoas contra a Covid-19.
Em São Paulo, com os 4 bilhões de reais, seria possível custear a educação de 840 mil alunos em escolas estaduais de ensino médio e a educação de 43 mil alunos na USP, construir 462 novas escolas, beneficiar 583 mil famílias por um ano com um programa de renda básica e comprar 72 milhões de doses da vacina Coronavac, suficientes para vacinar 36 milhões de pessoas contra a Covid-19.
Para Renata, o Estado ainda insiste nesse modelo de guerra às drogas, “que é um modelo de política que não reduz o consumo e o comércio de drogas ilícitas, não reduz a violência”.
“Pelo contrário, alimenta a violência e a corrupção dos agentes do Estado e o encarceramento em massa, além de inúmeras violações de direitos humanos em decorrência dessa política de guerra. O debate que estamos propondo é: por que se investe tanto em uma política ineficiente e que causa dor e sofrimento?”, questiona.
Leia a entrevista:
Como surgiu a ideia de fazer a pesquisa com o foco no orçamento gasto na política de guerra às drogas?
O projeto “Drogas: Quanto custa proibir” foi implementado pelo CESeC, que tem mais de 20 anos de experiência de pesquisas de segurança pública e justiça criminal, e é um projeto coordenado pela Julita Lemgruber, que tem mais de 40 anos de experiência nessa área.
A ideia do estudo vem do resultado da trajetória da própria Julita. Com o passar do tempo ela percebeu que é impossível falar de política de segurança pública ou de uma outra política pública sem falar de política de drogas.
É um estudo inédito no Brasil. Tem muitos estudos que mostram os impactos em termos de violações de direitos humanos da atual de política de guerra às drogas e do proibicionismo, mas não tem nenhum estudo que mostre quando isso custa aos cofres públicos.
Então o CESeC e a Julita identificaram essa lacuna e decidiram iniciar esse projeto que vai justamente pesquisar o custo orçamentário da proibição das drogas para diversas políticas. O primeiro relatório é para o custo de instituições de justiça criminal, mas depois vamos ter outras pesquisas olhando para os custos de educação e saúde. Esse projeto e esse relatório buscam suprir essa lacuna e propor um debate para a sociedade brasileira.
Qual a discussão que pretendiam gerar na sociedade com a pesquisa?
O que queremos debater é quando custa, afinal de contas, para os cofres públicos essa política proibicionista e de guerra às drogas. Em segundo lugar porque se investe tanto em uma política que não só é ineficiente para os objetivos que ela mesma se propõe, mas além disso causa tanta dor e sofrimento.
Precisamos discutir porque se insiste nesse modelo de guerra às drogas, que é um modelo de política que não reduz o consumo e o comércio de drogas ilícitas, não reduz a violência, pelo contrário, alimenta a violência e a corrupção dos agentes do Estado e o encarceramento em massa, além de inúmeras violações de direitos humanos em decorrência dessa política de guerra. O debate que estamos propondo é: por que se investe tanto em uma política ineficiente e que causa dor e sofrimento?
A ideia foi fazer um comparativo do que significa esse recurso, porque quando falamos em valores muito altos, perdemos a dimensão do que isso significa na prática. Quando colocamos no relatório que o RJ e SP gastaram 5,2 bilhões com políticas de proibição das drogas, isso é muito ou pouco? Aí tivemos a ideia de fazer alguns comparativos do que isso significa.
E esses recursos poderiam ser investidos em outras áreas…
Essa política de guerra está drenando recursos que poderiam ser investidos em programas de renda básica, na educação de adolescente ou adultos, políticas de moradia. É para a sociedade entender que são recursos que estão sendo drenados para uma política ineficiente e que tem enormes violações de direitos humanos, mas que poderiam estar sendo investidos em outras áreas.
No fim das contas queremos iniciar esse debate sobre o uso de recursos públicos em uma política tão nefasta quando a guerra às drogas. Política pública deveria ser feita, planejada e implementada com base em evidências. Precisamos exigir que a política de segurança seja assim e não em preconceitos e valores morais.
Existem muito estudos sobre o que funciona e o que não funciona sobre segurança pública, de prevenção de violência, de investigação de homicídios e do impacto nefasto da guerra às drogas em particular contra jovens negros e moradores de favelas e periferias. No entanto, essas evidências não são levadas em consideração no planejamento e na execução de políticas públicas.
O segundo ponto é transparência no acesso a dados e produção de dados para poder debater políticas públicas baseadas em evidências, que tem a ver com produção de informação, monitoramento de indicadores, monitoramento dos impactos das políticas. E uma coisa que nos deparamos durante o relatório foi a dificuldade do acesso aos dados.
Até via Lei de Acesso à Informação?
Apesar do Brasil ter uma Lei de Acesso à Informação, que é um marco muito importante, nos deparamos com duas ordens de problema: falta de transparência de instituições que tinham o dado, produzem o dado, mas demoraram um ano para responder. É uma verdadeira batalha. Também tem um problema de outra ordem que algumas instituições não produzem dados ou não produzem dados de qualidade.
Embora não tenha sido um objetivo do projeto, discutir a transparência e qualidade dos dados, o processo da pesquisa mostrou que isso é muito deficiente no Brasil. Temos muito ainda para avançar na sistematização e disponibilização de dados de qualidade e isso impacta diretamente a discussão sobre políticas públicas. Se você não tem informações de qualidade, como você vai dizer que uma política funciona ou não funciona?
O terceiro ponto é participação nas decisões sobre orçamento público. Esse é um ponto central. A discussão sobre orçamento, no debate público, às vezes está muito pautada pela questão da redução dos gastos. Não paramos de ver, principalmente atualmente, discussão dos governos sobre a necessidade de cortas gastos e colocar teto nos gastos de saúde e educação. Quando na verdade o debate de orçamento público é muito maior, o ciclo completo do orçamento: precisamos discutir receita, arrecadação e quanto e onde se investe.
A discussão deve ser: por que neste modelo de política, por que esse discurso segue financiando esse modelo proibicionista e de guerra às drogas em vez de financiar uma política de segurança que seja baseada na redução e investigação de homicídios, na prevenção e não na ostensividade. Mas o que nós vemos é um investimento cada vez maior no modelo de guerra e isso é feito em nome da chamada guerra às drogas, que não tem efeito na redução e tem um impacto enorme na vida das pessoas.
E na guerra às drogas, principalmente no Rio de Janeiro, vemos uma criminalização do morador de favela.
Uma operação policial no Rio de Janeiro, com helicóptero atirando do alto, não só deixa de desmontar uma rede criminosa, como gera uma ruptura no cotidiano daquele território.
São horas de tiroteio em que a escola fica fechada, os postos de saúde ficam fechados, os trabalhadores não podem sair de casa para trabalhar. Tem um impacto muito além da segurança pública que é a violação de outros direitos em decorrência desse modelo de guerra.
E quem ganha com isso?
Ninguém ganha, mas na verdade alguém lucra. No ponto de vista do ganho social? Ninguém. Mas alguém está lucrando com essa política. E essa é uma pergunta que precisa ser feita.