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Carta ao Procurador-Geral de Justiça do Rio de Janeiro (08/10/2019)

Ao Exmo. Sr.
José Eduardo Ciotola Gussen
Procurador-Geral de Justiça

O Rio de Janeiro vive um momento dramático no campo da segurança pública. Desde a posse do governador Wilson Witzel, os cidadãos fluminenses sofrem com o aumento dos já absurdos índices de letalidade policial e graves violações de direitos, principalmente das populações mais vulneráveis socialmente, como pobres, negros, jovens e moradores de periferias e favelas.

De acordo com os dados divulgados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), houve 1.249 mortes decorrentes de intervenção policial nos primeiros oito meses de 2019, 16% a mais do que as 1.075 registradas no mesmo período de 2018. Mantida essa tendência, as polícias fluminenses deverão superar as 1.534 mortes registradas ano passado, o total mais alto contabilizado desde o início da série histórica, em 1998.

O próprio Ministério Público do Rio de Janeiro mostrou no estudo “Letalidade Policial no Rio de Janeiro em 10 Pontos”, divulgado em setembro, que a média mensal de vítimas da letalidade policial no Estado saltou de 54, em 2015, para 156 em 2019. Análise do Observatório da Segurança RJ sobre os dados do ISP mostra que, no município do Rio de Janeiro e na Grande Niterói, as forças policiais, que têm como missão a proteção da população, são responsáveis por 40% das mortes violentas. Na Baixada Fluminense, a proporção é de 30%.

Ressaltamos que a letalidade policial não atinge a todos os bairros e municípios igualmente. Dados do ISP mostram que os batalhões da Polícia Militar que produziram mais mortes no ano de 2019, de janeiro a agosto, são o 7º BPM, localizado em São Gonçalo (137 mortes); o 14º, na região de Bangu (102 mortes); o 12º, em Niterói (94); o 24º, de Queimados e Japeri (93); e o 39º, de Belford Roxo (89).

Parte significativa dessas mortes ocorre em operações policiais caracterizadas pelo grande poder bélico e práticas de violações dos direitos constitucionais dos cidadãos. Nestas ações, é cada vez mais frequente o uso de helicópteros como plataformas de tiro, um meio de aterrorizar uma população acuada. De 1º de janeiro a 1º de outubro de 2019, o monitoramento do Observatório da Segurança RJ contabilizou 952 operações, das quais 61 com uso de helicópteros.

Em escolas de bairros como a Maré, crianças aprendem procedimentos de proteção no caso de ocorrência de tiroteios: imagens de meninos e meninas deitados na tentativa de abrigar-se do perigo têm sido divulgadas pela mídia e redes sociais com impressionante frequência. O Laboratório de Dados Fogo Cruzado recebeu no primeiro semestre de 2019 1.227 registros de tiroteios ou disparos de armas de fogo em dias letivos, durante o horário escolar e no perímetro de 300 metros de escolas e creches da região metropolitana, o que representa uma média diária de 13 tiroteios/disparos no entorno de instituições de ensino no primeiro semestre deste ano.

Entre as muitas mortes atribuídas a ações policiais, casos emblemáticos até hoje não tiveram respostas consistentes. Aguardam esclarecimento a Chacina do Fallet, em 8 de fevereiro de 2019, que resultou na morte de 15 jovens; o assassinato da Marielle Franco e Anderson Gomes, que completou 18 meses sem a identificação dos autores intelectuais do crime; o assassinato do menino Marcos Vinícius, morto a caminho da escola, e outras seis pessoas na Maré, no ano passado; os 8 mortos na Rocinha, em março de 2018; a morte de Rodrigo Alexandre Serrano, no Chapéu Mangueira, em setembro de 2018, até hoje à espera de perícia. Entre os muitos casos recentes, lembramos as mortes ocorridas em 2019 das crianças Ágatha Félix, de 8 anos, no Complexo do Alemão, e Kauan Peixoto, de 12 anos, na Chatuba, em Mesquita, Baixada Fluminense.

A frequência com que as mortes atribuídas a forças de segurança permanecem impunes no Rio de Janeiro fez com que, em 2017, o Brasil fosse condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) por não garantir justiça no Caso Nova Brasília, em que policiais foram acusados de violência sexual e de matar 26 jovens em incursões em 1994 e 1995, no Complexo do Alemão.

Demandamos, diante deste quadro, que o Ministério Público exerça, efetivamente, seu papel de instância de controle externo das polícias. No nosso entender, o MPRJ deve:

  • Exigir, através dos meios legais de direito, que o governo tome medidas para reduzir a violência policial e as mortes decorrentes de ações de agentes de segurança pública;
  • Investigar, de forma completa, célere, justa, imparcial e independente todas as mortes decorrentes de ações policiais e denunciar os agentes envolvidos nas ocorrências em que houver evidências de ilegalidade;
  • Criar e divulgar um plantão do MPRJ para o atendimento ao cidadão, que possa ser acionado pela população afetada durante operações policiais e outras situações de violações de direitos por agentes de segurança do Estado;
  • Garantir a participação da sociedade civil na elaboração de soluções, como o grupo de trabalho formado pelo Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP) e a Polícia Civil para discutir práticas nas operações;
  • Criar estruturas de investigação e perícia independentes, de acordo com a decisão da OEA contra o Estado Brasileiro no Caso Nova Brasília, para que haja um mecanismo de investigação autônomo e imparcial para todos os casos envolvendo violação dos direitos humanos cometidos por agentes de segurança pública do Estado;
  • Responsabilizar gestores estaduais por declarações e documentos públicos que possam ensejar, estimular e/ ou reiterar violações de direitos humanos.

A atuação dos  organismos de segurança pública no RJ, sob orientação direta do governador, não se caracteriza por excessos eventuais ou iniciativas de policiais que desobedecem um comando. O já apontado aumento da letalidade policial e as violações de direitos dos cidadãos são consequência direta de uma estratégia de segurança voltada ao extermínio.

Entendemos que o MPRJ vem empreendendo esforços no sentido de exercer o seu papel constitucional de controle externo das polícias, através da criação do GAESP e da produção de análises pelo Centro de Pesquisas do MPRJ. Por isso, confiamos que, neste momento de grave crise institucional e de direitos humanos e constitucionais, o Ministério Público irá atuar de forma inequívoca em favor dos cidadãos fluminenses, particularmente os que vivem em condições de vulnerabilidade social e econômica.

Dessa forma, nós, pesquisadores de segurança pública e representantes da sociedade civil, esperamos que o MPRJ responda publicamente às demandas apresentadas nesta carta, visando deter a violenta política de segurança pública ora em curso no Rio de Janeiro.

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CESeC – CENTRO DE ESTUDOS  DE SEGURANÇA E CIDADANIA

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