Desembargadores da Segunda Câmara Criminal do Rio de Janeiro decidiram no final de novembro por maioria de votos arquivar o processo contra um policial militar acusado de matar Eduardo de Jesus, de 10 anos, em abril de 2015 no conjunto de comunidades “Complexo do Alemão”.
O defensor público Daniel Lozoya afirmou que a Defensoria Pública do Rio de Janeiro pretende recorrer da decisão no Superior Tribunal de Justiça.
Eduardo de Jesus foi morto por policiais no fim da tarde, na porta de sua casa. Em entrevista concedida na época ao portal de notícias G1, sua mãe afirmou que assistia televisão com o jovem quando este saiu e foi morto enquanto brincava com um celular.
“Ele estava sentado no sofá comigo. Foi questão de segundos. Ele saiu e sentou no batente da porta. Teve um estrondo e, quando olhei, parte do crânio do meu filho estava na sala e ele caído lá embaixo morto”, disse.
O caso gerou protestos na comunidade, teve repercussão internacional e foi lamentado por autoridades como o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB).
Laudos da perícia feitos na época mostraram que as balas partiram de um fuzil da Polícia Militar, que ocupava o Complexo do Alemão.
Em novembro, a Divisão de Homicídios da Polícia Civil afirmou que as investigações concluíram que a morte ocorrera em uma troca de tirosentre dois policiais e criminosos na qual Eduardo teria sido acidentalmente atingido.
Eles teriam, portanto, atuado em legítima defesa, e por isso não foram indiciados no inquérito enviado ao Ministério Público. O documento também não conclui de qual dos dois soldados envolvidos teria partido o tiro.
Apesar disso, o Ministério Público denunciou em novembro de 2015 o policial militar Rafael de Freitas Monteiro Rodrigues à Justiça por homicídio com dolo eventual. O MP afirma que a versão dos policiais entra em conflito com os depoimentos de moradores, segundo os quais não teria ocorrido tiroteio. E que há incongruências no inquérito.
O Tribunal de Justiça do Rio aceitou a denúncia no mesmo mês. Em sua decisão, a juíza da 4ª Vara Criminal da Capital, Katylene Collyer Pires de Figueiredo, afirmou que o agente admitiu ter feito disparos.
Os desembargadores que votaram a favor do arquivamento do caso em 29 de novembro de 2016 afirmam, no entanto, que não há provas contra os acusados.
Em entrevista ao Nexo, a cientista social Silvia Ramos, coordenadora do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) da Universidade Cândido Mendes, critica a decisão, que ela avalia como um “insulto à sociedade democrática”.
Em casos violentos como o envolvendo Eduardo é comum que se use o substantivo “menino” ou “menina” antes do nome da vítima. Por que isso ocorre?
SILVIA RAMOS A ambivalência da guerra às drogas criou um clima de suspeição nas favelas. Todo mundo é suspeito de algum envolvimento no crime. Uma mulher de 60 anos pode ser “mãe de traficante”, “tia de traficante”, essa é uma linguagem muito forte usada pela polícia.
O termo “menino” evoca uma condição de inocência, insuspeição. Acho que é uma coisa muito forte que vem dos moradores das favelas, de ONGs e da mídia. É uma tentativa de isolar a criança de alguma responsabilidade.
Mas os policiais insistem que um menino grandão [para sua idade] pode estar no tráfico. Aparentemente o que aconteceu foi que policiais viram à distância esse menino mexendo no celular, acharam que era uma arma e deram um tiro direto na cabeça, que realmente pegou ele em cheio – se você é traficante, a polícia do Rio frequentemente acha que pode te matar.
Foi um tiro de “sniper”, solitário, não de um tiroteio, segundo todos os depoimentos. A família insiste nisso, e esse é um dos pontos de queda de braço em torno do inquérito policial.
Mas o departamento de homicídios concluiu que não tinha evidências de que foi execução porque havia evidências que contrariavam o que os moradores diziam. Com um tiroteio, a morte se configura bala perdida, um contexto muito diferente.
O que diferencia esse caso de outras mortes causadas por policiais?
SILVIA RAMOS Esse é um caso muito emblemático porque não foi em um beco escuro à noite, foi à luz do dia. A mãe estava presente, e foi até o filho imediatamente quando ouviu o tiro. Ela e outros moradores não permitiram que a polícia mexesse no corpo. Uma resposta foi mobilizada de forma muito rápida.
No geral os moradores não querem depor em casos desse tipo, mas nesse caso teve tudo o que era necessário, como manda o figurino, com um monte de testemunhas.
O Rivaldo [Barbosa], delegado titular da Divisão de Homicídios se envolveu. Ele teve encontro com a dona Terezinha [de Jesus, mãe de Eduardo] e falou “eu prometo para a senhora que encontraremos quem matou seu filho”.
O comandante da UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] recebeu ordens no mesmo dia para apreender as armas dos policiais que estavam em plantão por tudo isso e porque houve repercussão internacional.
Houve perícia, e todos os recursos que uma polícia técnica precisa. Foi um caso em que uma morte na favela teve um tratamento como se fosse uma morte fora da favela. Ninguém imaginava que a Divisão de Homicídios concluiria isso [que se tratou de legítima defesa].
Quando o inquérito foi concluído, a tensão foi tão grande que o próprio [ex-chefe da Polícia Civil Fernando] Veloso declarou que não concordava. O [governador Fernando] Pezão também deu declarações no início do governo, e o próprio [ex-secretário de Segurança Pública José Mariano] Beltrame disse que não gostou.
Que marca esse caso deixa para a Justiça no Rio de Janeiro?
SILVIA RAMOS O grave nesse caso é a Justiça dando esse recado, tem uma marca simbólica muito forte. Um menino de dez anos estava na porta de casa, vem a polícia dá um tiro, como a balística mostrou. Não é que o júri absolveu os policiais porque atiraram sem querer. O caso foi arquivado.
Mais do que injusto, esse cancelamento é insultante para todas as regras de uma sociedade democrática. Os policiais atiraram na intenção de matar o que provavelmente achavam ser um criminoso com um arma. Ao não levar ao tribunal do júri um caso em que policiais mataram imaginando que se tratava de um criminoso, a Justiça está firmando um pacto com a polícia, como se dissesse “se for bandido pode matar”.