Referência no debate sobre drogas, pobreza e racismo, o neurocientista norte-americano diz que o Brasil vive apartheid social
Depois de visitar novamente a região conhecida como Cracolândia, no centro de São Paulo, o neurocientista norte-americano Carl Hart disse ter a impressão de que o prefeito João Doria (PSDB), assim como parte da população da capital, não se preocupa com os pobres. “Eu não acho que essa administração se preocupe com os pobres. Isso está muito claro. Mas não é só ele. Eu acho que tem muita gente em São Paulo que não liga para os pobres”, disse Hart.
A gestão Doria desativou o programa De Braços Abertos, do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), para implantar um novo projeto na Cracolândia. O programa petista oferecia moradia e trabalho e era baseado em redução de danos. O Redenção, por sua vez, prevê até mesmo a internação compulsória de usuários de drogas.
Relatório apresentado no final de agosto pelos conselhos regionais de Medicina, Psicologia e Enfermagem em parceria com o Ministério Público concluiu que o programa de Doria é ineficaz no que diz respeito à recuperação dos pacientes após o período de internação. A prefeitura promete ajustes.
Referência no debate sobre drogas, pobreza e racismo, Hart defende a oferta de oportunidades que garantam a reinserção social dos usuários como fundamental no combate à dependência química. Em seu livro Um preço muito alto – A jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas (Zahar), Hart desconstrói mitos sobre as drogas e relembra sua trajetória pessoal, desde o contato com o crime e as drogas em um bairro violento de Miami até a carreira como pesquisador e professor titular da Universidade de Columbia, em Nova York.
Em visita a São Paulo na quarta-feira 13, Hart disse que a função da política de drogas em um País de passado escravocrata como Brasil é perpetuar o racismo e a desigualdade social. A entrevista a seguir foi concedida durante evento de lançamento do Movimentos, grupo formado por jovens moradores de favelas e periferias – do Rio de Janeiro, principalmente – para discutir uma política de drogas a partir da perspectiva de quem sofre diariamente as consequências dessa guerra.
Pergunta: Você esteve na Cracolândia hoje [quarta-feira 13]. Quais foram as suas impressões?
Carl Hart: Eu tive muitas impressões. Primeiro, eu odeio esse nome. É um nome horrível. Ali não é a terra do crack. Quando as pessoas usam esse termo, ele é usado para isentar a população de ter que tomar qualquer atitude. Porque o crack não é o problema. Pobreza é o problema. Saúde mental é o problema. O racismo é o problema. Então, quando as pessoas usam o termo Cracolândia, o que elas me dizem é que são estúpidas ou então que não dão a mínima para as pessoas. Então esse é um termo horrível.
Outra impressão foi que… eu já estive ali diversas vezes. E desta vez, que o De Braços Abertos não está mais funcionando, o cheiro estava realmente horrível. As pessoas não têm mais a moradia nos hotéis, então elas têm que ir ao banheiro na rua. A rua cheirava como um imenso vaso sanitário.
Pergunta: Que relação você vê entre as políticas de drogas e o racismo?
CH: Temos que lembrar da escravidão, ambos os países [Brasil e Estados Unidos] tiveram escravidão. Como resultado da escravidão, temos os negros de ambas as sociedades vivendo em desvantagem. Logo, a política de drogas nos permite ignorar o impacto da escravidão.
Nós fingimos que o problema são as drogas, e a política de drogas perpetua a desigualdade entre os grupos, porque as pessoas que são presas por drogas nesta sociedade, no Brasil, assim como nos Estados Unidos, são majoritariamente negras. Então as políticas de drogas funcionam como outro tipo de escravidão, de certa forma.
As questões nunca são sobre as drogas. É sempre sobre uma forma de subjugar as pessoas. Se o assunto são as drogas, nós não precisaremos falar sobre desemprego, educação precária ou falta de moradia. Nós não precisaremos falar sobre nada disso. Então a função da política de droga é ofuscar as verdadeiras questões.
Pergunta: Três anos atrás você disse que, no Brasil, a política de drogas funciona como uma espécie de apartheid. Você ainda acha isso?
CH: Eu disse que o que acontece no Brasil é um apartheid. Não apenas com a política de drogas. A política de drogas é apenas uma das ferramentas, ela é usada para garantir que o apartheid continue. E existem outras políticas que sustentam a discriminação racial de outras formas.
Mas, sim, quando eu digo que isso me lembra um apartheid eu apenas quero dizer que metade da sua população é africana [54% se diz preto ou pardo, segundo o IBGE]. Mas, quando você pensa em quem está no mercado, quem está trabalhando, quem compõe a classe média, você não vê esses africanos. Isso tem a aparência de um apartheid.
Pergunta: O secretário municipal da Assistência Social, Filipe Sabará, defende a internação compulsória em casos extremos de dependência química. Qual é a sua opinião?
CH: Como adultos, nós temos autonomia e nós podemos decidir o que nós queremos fazer, desde que não machuquemos outras pessoas. Nós somos responsáveis, como adultos, e temos que pagar o preço pelas nossas decisões como adulto. Quando alguém viola a sua autonomia, nós chamamos isso de violação de direitos humanos. Esta pessoa de quem você está falando está violando os direitos humanos. Isso é terrível. Não há como olhar para isso e dizer que é razoável ou racional ou algo que uma sociedade deve fazer.
Se a pessoa não está prejudicando a outra, não há razão para essa internação compulsória. Os adultos têm direitos, eles têm autonomia para tomar as suas próprias decisões. Eu não deveria poder obrigar alguém a fazer alguma coisa. Isso não é certo.
Pergunta: Mesmo que essa pessoa possa morrer por conta de seu próprio comportamento?
CH: Sim. Por exemplo, quando nós pensamos sobre doenças mentais, quando alguém é um perigo a si mesmo e pode vir a cometer suicídio, nós temos procedimentos para avaliar se essa pessoa precisa de tratamento. Mas, quando nós falamos de drogas, isso é raro. E se eu quiser me matar isso também é uma decisão minha.
Pergunta: Por que há tanto senso comum e tantos mitos na discussão sobre drogas, inclusive relacionados à região que nós chamamos de Cracolândia?
CH: Há muitos mitos sobre drogas, em parte porque muitas pessoas não têm experiência com drogas. Então eu posso lhe dizer algumas besteiras sobre drogas e você vai acreditar em mim. E esse mito irá perdurar porque você não tem experiência alguma. Muitas pessoas na sociedade não sabem quais são os efeitos das drogas e então podem dizer qualquer coisa. É por isso que muitos desses mitos ocorrem.
Quando pensamos sobre o lugar que o De Braços Abertos ocupava e quando olhamos para as pessoas que estão lá, elas são majoritariamente negras. Negras e pobres. Então podemos inventar histórias incríveis sobre aquele lugar, porque a maioria das pessoas desta cidade não vai até lá, não sabe o que está acontece por lá, não conhece aquelas pessoas. Então, se você desconhece, você estará sujeito a acreditar em mentiras. Não é tão complicado.
Pergunta: O que você acha da política de drogas do prefeito de São Paulo, João Doria?
CH: Eu acho que, baseado no comportamento, baseado no que eu vi, eu não acho que a administração dessa prefeitura se preocupe com os pobres. Isso está muito claro. Mas não é só ele. Eu acho que tem muita gente em São Paulo que não liga para os pobres.
Se não, isso não continuaria, porque eu acho que o prefeito tem o apoio da sociedade. Então eu acho que as pessoas não se importam com os pobres. Eu não quero culpar apenas o prefeito, eu acho que a população também deveria compartilhar da culpa. Quando você tem uma desigualdade tão imensa entre ricos e pobres, algo de muito errado está acontecendo nessa sociedade.
Não quero simplesmente culpar São Paulo ou o Brasil, nós temos problemas semelhantes nos Estados Unidos. Nós temos um presidente [Donald Trump] que é apoiado por muitas das pessoas das quais me referi aqui em São Paulo. Então nós temos problemas semelhantes.
Pergunta: Você é a favor da legalização das drogas?
CH: Eu sou a favor da regulamentação das drogas, da mesma forma como lidamos com álcool e tabaco. Eu acho que nós podemos fazer o mesmo com essas outras drogas, cocaína etc.
Eu sou a favor disso por uma série de razões. Isso impedirá que pessoas que apenas usam drogas de forma recreativa sejam presas. Uma boa analogia seria o orgasmo durante o sexo. Quando as pessoas fazem sexo elas buscam o orgasmo. Você consegue imaginar um governo controlando a quantidade de orgasmos que você pode ter? Isso seria absurdo. Mas é basicamente o que estão fazendo com as drogas.
Outra razão que me faz ser a favor é que isso irá melhorar a qualidade das drogas que chegam às pessoas. Porque eu me preocupo com as adulterações e com as impurezas que muitas dessas drogas contêm quando compradas no mercado ilegal. Mas, quando você compra álcool, o governo garante que esse álcool é puro, que não há impurezas. Isso aumenta a segurança. Então eu acredito que se o governo regulamentasse as outras drogas isso traria mais segurança.
Mas, antes de chegar lá, é preciso muita educação. Foi por isso que eu escrevi o meu livro, para tentar ajudar as pessoas a terem acesso a essa educação.
Pergunta: Sua pesquisa fala muito sobre alternativas. Que tipo de alternativas poderiam ser dadas às pessoas que têm problemas com o abuso de drogas aqui em São Paulo?
CH: A maioria das pessoas que usa drogas não é viciada, apenas uma pequena parcela é. Há muitas pessoas usando drogas e elas trabalham e cuidam das suas famílias. E está tudo bem.
Quando nós pensamos nas pessoas que são viciadas, em lugares como aquele onde era desenvolvido o De Braços Abertos, nós pensamos em alternativas. Muitas dessas pessoas estão tão doentes que precisam de tratamento, seja tratamento para a saúde mental ou para a saúde física. Elas precisam estar saudáveis para poderem aproveitar as oportunidades.
É preciso ter certeza de que essas pessoas têm oportunidades econômicas, oportunidades de trabalho. Como você, como eu. Aqui neste lugar deve haver muitos usuários de drogas, e as pessoas irão para o trabalho amanhã. Porque elas têm alternativas, têm seus entes queridos, têm bons empregos. E nós devemos fazer o mesmo com as pessoas que estão tendo problemas em nossa sociedade. Não é complicado, é bastante simples.