Os dados mostram que o órgão não vem cumprindo, ou cumprindo mal, as vastas atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição de 1988 – sobretudo em áreas que deveriam ser de atuação prioritária: controle externo das polícias, supervisão da pena de prisão e defesa de direitos coletivos.
A notoriedade conquistada pelo Ministério Público brasileiro nos últimos anos, herança do grande aumento de poder que lhe foi conferido pela Constituição de 1988, tem gerado dúvidas e curiosidade acerca de sua composição, atribuições e limites de atuação. Afinal, o órgão não só conquistou uma posição de independência dos demais poderes da República, como recebe amplos recursos para o cumprimento de suas tarefas e atua em diferentes áreas que atingem diretamente a vida dos cidadãos.
Os resultados completos do estudo estão disponíveis aqui
Ao traçar um perfil a partir de informações dos próprios integrantes do Ministério Público, a pesquisa “Ministério Público: Guardião da democracia?”, realizada pelo CeSec, vem ajudar a preencher esta lacuna e revela que membros do MP constituem um segmento fortemente elitizado da sociedade, além de apresentar uma clara sobrerrepresentação masculina: 70% dos promotores e procuradores são homens e 77% são brancos.
A origem social elevada se mede pela alta escolaridade dos genitores: 60% dos pais e 47% das mães dos entrevistados tinham curso superior, enquanto no conjunto da população brasileira com 50 anos de idade ou mais, essa proporção é de 9% para homens e 8,9% para mulheres.
“A dificuldade do concurso para ingresso no órgão e a exigência de 3 anos de trabalho prévio em atividades jurídicas funcionam como fortes barreiras à entrada de pessoas de estratos sociais mais baixos nos quadros do Ministério Público”, avalia Julita Lemgruber, coordenadora da pesquisa.
Atuação distorcida
A Constituição Federal de 1988 delegou ao Ministério Público vastas atribuições, muito além da sua tarefa tradicional de atuar como parte acusatória nos processos penais. Algumas prioridades de atuação, no entanto, foram traçadas – supervisão da pena de prisão, defesa de direitos coletivos e controle externo das polícias (neste último caso, com exclusividade).
Para que pudesse dar conta dessa extensa missão, garantiu-se a independência do órgão em relação aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, assim como a autonomia funcional dos seus membros, com poucos mecanismos de controle interno e externo tanto sobre a instituição quanto sobre as atuações individuais de promotores e procuradores.
Esta independência funcional conferida aos membros do MP parece ser uma faca de dois gumes: segundo 90,6% dos entrevistados, ela é imprescindível para garantir a isenção do trabalho dos promotores. Mas para quase metade dos entrevistados, pode também servir de escudo para a omissão. “Essa independência torna muito difícil o controle e a cobrança sobre as atividades-fim e as decisões dos membros do MP, mesmo quando equivocadas, seletivas, morosas ou ineficazes”, analisa Lemgruber.
No que diz respeito às linhas de atuação, a única prioridade citada por mais da metade dos entrevistados foi combate à corrupção (62%). Em seguida, os temas mais mencionados foram: investigação criminal (49%), criança e adolescente (47%), meio ambiente (45%) e serviços de relevância pública (educação, saúde, comunicação etc.).
A pesquisa mostra que o MP deixou em plano secundário a tarefa de controle externo da atividade policial: apenas 7% dos entrevistados disseram ocupar-se unicamente dessa tarefa e 24% disseram desempenhá-la parcialmente, isto é, junto com outras linhas de trabalho.
Sendo assim, as demais instituições que poderiam desempenhar esta função (como as ouvidorias de polícia, por exemplo) não têm autoridade nem independência suficientes para isso. O resultado é a permanência de modelos arcaicos e autoritários de polícia, em que campeiam a corrupção e a extrema violência. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as polícias brasileiras mataram 3.345 pessoas em 2015, uma média de nove por dia.
“Mais do que omissão do MP, há certa ‘cumplicidade’ entre o órgão e as polícias, sobre tramitação de processos penais iniciados com prisão em flagrante, na qual promotores repetem na denúncia a versão policial dos fatos, sem averiguar sua veracidade, nem a legalidade do flagrante, nem tampouco a possível ocorrência de tortura ou maus tratos”, denuncia a coordenadora da pesquisa.
Em resumo, essa área de atuação do MP, tão importante para a promoção da legalidade, de direitos fundamentais e do aperfeiçoamento democrático, não é sequer mencionada em 15 dos 27 websites do órgão; não é percebida como prioritária por 88% dos promotores e procuradores, e não faz parte das atividades de 70% dos membros da instituição. Além disso, recebe dos próprios membros do MP a avaliação mais baixa entre todas as áreas de atuação: 42% dos entrevistados reconhecem que o desempenho do órgão no controle externo da polícia é ruim ou péssimo e 35% consideram-no regular.
Na área de supervisão da execução penal, a atuação do MP não é melhor. Cabe ao órgão, nessa área, fiscalizar as prisões e garantir a observância dos direitos dos presos durante o cumprimento da pena. Mas só uma minoria dos seus membros se ocupa dessas tarefas: 4% exclusivamente e 14%, parcialmente.
A situação do sistema carcerário brasileiro é calamitosa e tem-se agravado nos últimos anos com o vertiginoso crescimento do número de presos no país, superando 620 mil pessoas em 2014. Superlotação; condições de vida degradantes; violência interpessoal e institucional; corrupção endêmica; flagrante descumprimento das regras mais básicas de tratamento das pessoas presas – são problemas que caberiam ao Ministério Público enfrentar, mas que não recebem sua devida atenção.
Vista em conjunto, a defesa de direitos difusos e coletivos, que a Constituição de 88 também atribuiu ao MP, parece mais bem sucedida que as duas áreas mencionadas anteriormente: 39% dos membros entrevistados disseram ocupar-se exclusivamente e 24%, parcialmente de temas relacionados a direitos coletivos.
Entretanto a enorme abrangência dessa linha de trabalho leva a que se privilegiem algumas áreas de atuação em detrimento de outras, deixando a descoberto muitos direitos fundamentais e contribuindo bem menos para a consolidação da democracia do que o idealizado pela Constituição.
As escolhas de que tipos de direitos privilegiar e que linhas de ação adotar (judiciais ou extrajudiciais) resultam em grande medida da ação voluntarista e fragmentária de indivíduos e grupos, não de regulamentação legal específica nem de orientações institucionais padronizadas ou de pressões da sociedade civil.
As linhas de trabalho na área de direitos coletivos mais citadas nos websites dos MPs são também aqueles em que os entrevistados avaliam melhor o desempenho do órgão: defesa dos direitos de crianças e adolescentes (72% consideram boa ou ótima a atuação do MP); proteção do meio ambiente (68%); defesa do consumidor (66%); defesa da saúde pública (59%) e da educação (57%). Defesa dos direitos de portadores de necessidades especiais também recebeu boa avaliação da maioria dos entrevistados (58%), embora seja citada expressamente como linha de trabalho num número menor de websites estaduais (16 dos 27).
Em resumo, o balanço feito pela pesquisa do CESeC, mostra que o trabalho do MP tem-se concentrado mais na sua tradicional tarefa de acusação penal, no combate à corrupção e em algumas outras áreas específicas. E negligenciado tarefas imprescindíveis à garantia de direitos básicos, como o controle externo das polícias e a fiscalização das punições legais.
Os resultados do estudo sugerem a necessidade de se repensar o arranjo institucional concebido pelos constituintes de 1988, no sentido, não de restringir a independência funcional dos promotores e procuradores, mas de assegurar uma padronização mínima das suas áreas e formas de atuação, de modo a garantir que a defesa de direitos ocorra por via institucional, que favoreça os segmentos mais vulneráveis e que o cumprimento das atribuições do MP possa ser efetivamente conhecido, cobrado e avaliado pela população.
Sobre a pesquisa
Realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CeSec) da Universidade Candido Mendes, com apoio do Fundo de Investimento Social da Família A. Jacob e Betty Lafer, a pesquisa “Ministério Público: Guardião da democracia brasileira?” levantou informações em um questionário online respondido por uma amostra de 899 promotores e procuradores em todo o Brasil, com o apoio do Conselho Nacional do Ministério Público e da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça. A amostra é representativa dos 12.326 membros dos MPs federais e estaduais existentes no país em janeiro de 2015. O envio das respostas estendeu-se de fevereiro de 2015 a fevereiro de 2016.
Além disso, foram coletados dados nos websites dos MPs de todas as unidades da federação sobre número de membros ativos e linhas de trabalho desenvolvidas em cada um. Realizaram-se também entrevistas e grupos de discussão com promotores, policiais, agentes penitenciários e ativistas de direitos humanos no RJ e em MG, tendo como foco a avaliação das linhas de atuação do MP.