A disputa de criminosos rivais pelo comando do tráfico na Rocinha, que deixou ao menos sete mortos, interrompeu o transporte público na favela e fechou escolas e postos de saúde por mais de uma semana, representa mais um capítulo da escalada da criminalidade no Estado do Rio de Janeiro e do que a socióloga Julita Lemgruber vê como fracasso da política nacional de guerra às drogas.
Primeira mulher a comandar o sistema prisional fluminense e ex-ouvidora da Polícia Militar no Estado, Julita diz que é preciso encarar de frente os custos dessa política.
Uma das diretoras do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) da Universidade Candido Mendes, ela prepara um estudo em conjunto com outros especialistas para mapear e transformar em números tantos os gastos causados por essa política, que, diz, incluem desde o custo operacional do sistema de Justiça Criminal até boa parte dos 60 mil homicídios anuais no país, quanto seu impacto na sociedade.
Precisamos mostrar para a sociedade brasileira quanto está custando implementar uma política míope, fracassada na sua origem, que é essa política de guerra às drogas.
Ela lembra que a situação é particularmente grave no Rio, que, desde o fim de julho, ganhou o reforço de 10 mil militares. Se por um lado, o número de mortos pela polícia fluminense cresceu 30% de janeiro a agosto (712 casos) , por outro, o Estado já teve, de janeiro até a última terça-feira (3), ao menos 105 PMs mortos (21 vítimas estavam em serviço, 64 de folga e outros 20 eram reformados ou da reserva).
Para ela, a atual escalada da violência é reflexo da inexistência de uma política de segurança pública, agravada pela crise econômica no Estado e pela deterioração do programa de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), principal aposta do governo nos últimos dez anos.
Ia ter Copa, Olimpíada, então era preciso preparar essa cidade para esses milhares de turistas que iam chegar (…). Para isso, se ocupou militarmente as favelas.
Ante as críticas da socióloga, a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro foi procurada na sexta-feira (6), mas não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Guerra às drogas
Se fala muito nos custos da violência, mas precisamos encarar o custo da guerra às drogas. Quando a gente compara percentuais do orçamento gastos em saúde e educação com os números gastos em segurança, em especial no Rio de Janeiro, fica chocado. Quanto custa para a polícia implementar essa legislação, quanto custa para área da Justiça Criminal — desde o funcionamento dos tribunais, salários de juízes, promotores, defensores–, para o sistema penitenciário? O Brasil tem 60 mil homicídios por ano, muitos desses diretamente relacionados com a proibição das drogas.
No Rio, milhares de crianças todos os dias não conseguem ir à aula por conta de tiroteios. Qual o impacto disso no desempenho escolar, nas possibilidades futuras dessas crianças? O que significa uma clínica da família ficar fechada, quando pessoas deixam de ser atendidas, até morrem? Isso precisa ser traduzido em números.
Estou começando uma pesquisa, reunindo um grupo de especialistas, para mapear essas questões, entender quais são os melhores indicadores para fazer essa avaliação e transformar isso em números. Realmente mostrar para a sociedade brasileira quanto está custando implementar uma política míope, fracassada na sua origem, que é essa política de guerra às drogas.
Crise na segurança
Chegamos a esse ponto porque não há política de segurança pública no Estado. O que é uma política de segurança? É você ter uma estratégia que abarca primeiro um diagnóstico, saber realmente onde estão concentradas as manchas criminais. A partir daí, você faz um planejamento, como vai distribuir o efetivo, mapear o que acontece, então implementa e depois monitora para ver se está funcionando. Se não estiver, revê. Isso nunca aconteceu.
O que se teve foi a preocupação de manter a cidade segura para os grandes eventos. Ia ter Copa, Olimpíada, então era preciso preparar essa cidade para esses milhares de turistas que iam chegar, era preciso que a mídia tivesse boa vontade e mostrasse um local seguro. Para isso, se ocupou militarmente as favelas.
O Rio vive hoje o resultado de não ter sido implementada uma política de segurança pública e também uma crise de legitimidade. Você tem um ex-governador preso, vários ex-secretários presos, em um determinado momento quase todos os membros do Tribunal de Contas do Estado estavam presos.
Forças Armadas e UPP
O desfile desses soldados é apenas uma forma de dizer à classe média: ‘não se preocupe, nós estamos aqui, estamos lhe dando segurança’. Os índices de agosto mostram que, mesmo com toda a movimentação das forças federais [cerca de 10.000 militares reforçam o policiamento no Estado desde o fim de julho] a criminalidade permaneceu a mesma e, em alguns casos, até cresceu.
Desde muito cedo fui muito crítica das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), que é um programa com alta concentração de recursos humanos. Teve um momento, por exemplo, em que você tinha mais homens ocupando militarmente favelas naquele cinturão onde iam acontecer os grandes eventos do que em áreas inteiras da Baixada Fluminense em que os índices de criminalidade têm crescido assustadoramente.
O que se teve não foi uma política, mas uma estratégia de criação, tentativa de criação, de policiamento comunitário em algumas áreas que não deu certo. Pode-se até dizer que, no início, em algumas favelas menores, o modelo funcionou, mas à medida que projeto se expandiu a toque de caixa, justamente para fazer frente aos grandes eventos, se perdeu qualquer possibilidade de efetivar aquela estratégia enquanto policiamento comunitário de fato.
Falência do policiamento comunitário e volta do tráfico
Essa redução [do efetivo das UPPs] é uma desidratação do programa. Não estou dizendo que as UPPs precisam ser salvas da maneira como estão. O que defendo é que o asfalto tem direito a segurança e a favela também. Direito à segurança deveria ser algo tão claro quanto direito à educação e à saúde.
Ao invés de falar que o programa não vai acabar, o governo deveria estar dizendo: ‘nós erramos, foi uma estratégia equivocada. Vamos nos reinventar. Restabelecer a possibilidade de um policiamento comunitário respeitoso’. É um primeiro passo.
Para cada UPP deveria ter sido criada desde o início uma miniouvidoria ligada à Ouvidoria Geral da PM para que realmente a comunidade tivesse onde apresentar suas queixas em relação ao comportamento daqueles policiais. Sem planejamento, sem cuidado na capacitação desses policias –e nisso Beltrame [José Mariano Beltrame, ex-secretário de Segurança] tinha razão–, sem que haja provisão de outros serviços sociais e, principalmente, sem cuidado na manutenção do diálogo com a comunidade de forma efetiva, não havia como o projeto dar certo.
Se você tem uma força, que é uma força de ocupação, desrespeitosa, é claro que a população acaba estabelecendo ou restabelecendo vínculos com o tráfico –não que o tráfico domine completamente as favelas. Hoje a situação chegou a tal ponto, a relação entre a polícia e a comunidade está tão deteriorada, que passa a valer de novo a vontade do traficante como alguém visto como capaz de manter a paz na favela.
Mortes de policiais
Não é possível que a gente conviva em um Estado em que a vida de policiais valha tão pouco. Fala-se muito da banalização da vida do policial e eu concordo. Enquanto estive Nova York nos últimos meses, uma policial morreu e isso foi um escândalo, manchete do jornal New York Times. Cadê o governador no enterro desses policiais, dizendo que isso não pode acontecer?
A questão da morte de policiais está muito vinculada também ao aumento da criminalidade geral no Estado. Claro que é preciso olhar caso a caso, mas só uma pequena parte desses policiais morreu em serviço.
Vários casos são assaltos – os assaltos a mão armada cresceram vertiginosamente nos últimos tempos . Evidente que o policial, se está armado, vai reagir. E tem, claro, a questão de que, quando alguém está cometendo um crime, reconhece que há um policial no local, acaba o matando. Precisamos preservar as vidas de quem se dedica a segurança pública.
Letalidade policial
A Core (Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil) passou nove dias na favela do Jacarezinho a pretexto de encontrar quem matou um policial. Sete pessoas foram mortas nesse período e ninguém falou nada. Não houve uma única voz do secretário de Segurança ou do chefe de Polícia Civil ou mesmo do governador dizendo que isso não pode acontecer. Eles ocuparam a favela com autorização de quem?
“Vergonhosamente, a polícia admite que uma morte na zona sul do Rio de Janeiro vai ser tratada diferente de uma morte na favela.
A Secretaria de Segurança tem que dizer com muita clareza que a polícia foi feita para prender, não para matar. É uma decisão de governo você orientar a sua polícia a não usar da letalidade nas ações cotidianas.
Legalização
Sou absolutamente a favor da legalização de todas as drogas. Temos que admitir, enquanto sociedade, que um mundo sem drogas é uma fantasia. A humanidade sempre usou drogas, seja para fins ritualísticos, medicinais ou de prazer. E vai continuar usando. O tema das drogas precisa ser um tema de saúde pública, não de saúde criminal. Em um mercado legal você pode, sem hipocrisia e com responsabilidade, orientar a população.
O Brasil foi vitorioso no combate da nicotina, que provoca danos enormes. O mesmo não aconteceu em relação ao álcool, cuja indústria é poderosíssima e que causa muito mais danos do que qualquer outra droga, legal ou não.
Quando se fala em legalização muita gente diz: ‘ah, vocês querem liberar as drogas’. Não. Queremos é impedir o que existe hoje, que é um liberou geral. Se optou pelo enfrentamento violento ao tráfico de drogas que acontece na favela, mas no resto da cidade o consumo acontece de forma absolutamente liberada.