Por que a foto de uma abordagem policial remete à escravidão, segundo 3 estudiosos

QUARENTA PESSOAS, INCLUINDO ADOLESCENTES, FORAM DETIDAS NA FAVELA DO JACAREZINHO E LEVADAS EM FILA INDIANA PARA DELEGACIA | FOTO: GUITO MORETO/AGÊNCIA O GLOBO

Advogados apontam irregularidade em ação que prendeu 40 pessoas no Rio de Janeiro, após morte de delegado, no dia 12

Na sexta-feira (12), a Polícia Civil do Rio de Janeiro fez uma operação nas comunidades do Jacarezinho e Arará, na zona norte da capital, em busca de suspeitos de assassinar Fábio Monteiro, de 39 anos, delegado da Polícia Civil. O corpo foi encontrado, no mesmo dia 12, nu, dentro do porta-malas de um carro. Segundo testemunhas, Monteiro reagiu a uma tentativa de assalto no Jacaré e foi morto com vários tiros. Durante a ação da polícia, houve tiroteio e uma pessoa morreu.

Quarenta pessoas foram detidas e levadas para a delegacia para averiguação. Os suspeitos, entre homens, mulheres e adolescentes, caminharam para a delegacia em fila indiana, de mãos dadas, sob a mira de fuzis. Algumas imagens divulgadas pela imprensa mostraram grupos menores de suspeitos presos uns aos outros por algemas ou lacres. De acordo com a Polícia Civil do Rio, três suspeitos foram presos depois da averiguação porque, contra eles, havia mandados de prisão. Os outros foram liberados.

O Nexo questionou a polícia sobre os motivos de essas pessoas terem sido consideradas suspeitas, mas a assessoria de imprensa do órgão disse que, “por questões de segurança, as técnicas policiais não podem ser reveladas”. O órgão também foi questionado a respeito da fila indiana. A polícia afirmou que “segue o protocolo de abordagem da corporação”. Juristas ouvidos pelo Nexo apontam irregularidades na ação.

Capitães do mato e escravidão

“Essa foto remete a imagens de capitães do mato arrebanhando negros na época da escravidão”, disse ao Nexo a socióloga Julita Lemgruber, do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) da Universidade Candido Mendes. “Amarraram as pessoas como mercadorias. Uma vergonha. Inadmissível. O secretário de Segurança disse que a morte do delegado era uma afronta à democracia. Afronta à democracia é a polícia se comportar como vem se comportando nas favelas do Rio de Janeiro.”

“Essa foto remete a imagens de capitães do mato arrebanhando negros na época da escravidão”

A socióloga Jacqueline Sinhoretto, do Gevac (Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos) da UFSCar, concorda com a referência à escravidão. “São todas pessoas muitos jovens e muitos estão sem camisa, o que indica que foram surpreendidos e não tiveram oportunidade de se vestir, pegar documentos, características de prisões com mandado, que a gente espera que sejam respeitadas. E, evidentemente, não tem nenhum branco ali. Essa ação tem um conteúdo racista evidente”, afirmou ao Nexo.

Sinhoretto destaca ainda que a polícia não é ingênua, que são profissionais qualificados, que passaram por concurso público, e que por isso conhecem a história da escravidão no Brasil. Por isso, para ela, “estão cientes do conteúdo simbólico que essa cena produz”.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, Marcelo Chalréo, também vê racismo na ação. “Isso é fora de qualquer propósito. Uma polícia racista, preconceituosa, classista. Só tem pobre [entre os detidos]”, disse ao Nexo. Ele também usou o termo “capitão do mato” para se referir à ação da polícia.

A polícia pode abordar pessoas sem mandado?

Sim. Policiais civis ou militares podem revistar pessoas sem ordem do juiz, quando tiverem “fundadas suspeitas” de que a pessoa pode estar escondendo armas de fogo, objetos destinados à prática de crime ou drogas. Nessas situações, de acordo com uma cartilha lançada pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe-SP), a polícia pode pedir que a pessoa se identifique, mas não pode prender alguém porque a pessoa está sem documentos. Os agentes também não podem gritar ou humilhar o suspeito.
Mulheres devem ser revistadas por mulheres, quando possível.

As pessoas podem ser levadas à delegacia?

De acordo com Chalréo, apenas quando elas são flagradas cometendo um crime ou quando há um mandado de prisão ou de condução coercitiva. Fora esses casos, não podem ser levadas para a delegacia.

“Prisão para averiguação não existe. Entre os detidos nessa operação havia vendedor de açaí que estava trabalhando, havia gente que estava saindo de casa para o trabalho, gente que estava parada em um poste, fumando. Que risco elas apresentavam para a sociedade? A polícia faz isso para impor o terror”, afirmou, em entrevista ao Nexo. A OAB-RJ, segundo ele, prepara uma representação que será enviada ao Ministério Público, órgão encarregado de fiscalizar as ações da polícia, pedindo apuração da ação no Jacarezinho.

“Que risco elas apresentavam para a sociedade? A polícia faz isso para impor o terror”

A Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) também enviou ofício à Polícia Civil, questionando se houve registro de algum ato ilícito praticado pelas pessoas detidas que justificasse sua detenção.

As pessoas podem ser algemadas umas às outras?

Quando há abordagens, os policiais só podem algemar alguém se esta pessoa estiver sendo presa em flagrante ou se for foragida da Justiça. Mesmo assim, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, em 2008, que algemas só podem ser usadas em casos excepcionais, quando há resistência, receio de fuga ou de perigo à integridade da pessoa ou dos outros.

“O uso de algemas precisa ser justificado e, caso não haja justificativa, os agentes podem ser responsabilizados civil e penalmente”, disse ao Nexo a professora de Direito da FGV-SP Maíra Rocha Machado.

Apesar disso, segundo ela, algemas continuam sendo usadas de forma rotineira no Brasil. A professora afirma que é comum ver pessoas algemadas em conjunto, umas às outras, até mesmo em audiências de custódia, diante do juiz e do promotor. A súmula do Supremo não diz nada a respeito de prender uma pessoa à outra. “Nessa situação específica, é importante frisar que o ato da prisão e de fazê-los percorrer a comunidade inteira, andar até a delegacia, naquela circunstância, é altamente violador de direitos”, afirma. “Eles estavam sob a mira de fuzis e de shorts, sem camisa. Não parecem armados ou em condições de oferecer resistência”, completa.

As mesmas regras valem para crianças e adolescentes?

Sim. De acordo com Chalréo, a diferença é que crianças não podem ser presas, mas sim apreendidas. Se estiverem cometendo crimes, elas podem ser levadas a qualquer delegacia da região. Mas, depois, precisam ser encaminhadas para a delegacia especializada em crimes envolvendo crianças e adolescentes.

O que diz a Polícia Civil

“Na última sexta-feira (12), no Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, os agentes policiais (em operação após morte de um delegado) consideraram 40 pessoas suspeitas e as encaminharam para a Cidade da Polícia. Contra três delas constavam mandados de prisão e elas foram detidas. O modo de agir da Polícia Civil segue o protocolo de abordagem da corporação. As técnicas policiais, por questões de segurança, não podem ser reveladas. E não haverá posicionamento da PCERJ além dessa nota.”

Visualizar matéria

versao para impressão

Mais Participações