Educação pelo Rio

Capital fluminense, berço do bolsonarismo, é nossa catástrofe nacional escorregando morro abaixo

O Rio é o de Janeiro —esse lugar-comum (de beleza e violência). Minha primeira viagem pós-lockdown pandêmico foi para o Rio, depois de 15 anos que eu não pisava lá. O ideal seria escrever um romance de costumes sobre o Rio, mas como me falta talento, o romance sai primário, feito redação escolar das séries iniciais.

O título é uma paródia do poema “Educação pela Pedra”, do pernambucano João Cabral de Melo Neto. (Comecei a ler no Rio uma biografia dele, que me provocou engulhos na primeira parte, ao tratar, quase como elogio, da oligarquia usineira de Pernambuco, origem de João Cabral, e da qual o poeta se orgulhava).

Tive engulhos porque as origens de João Cabral batem de frente contra a minha falta de origens naquele mesmo lugar (e o Rio me lembra Recife, o cheiro, o mar e certa geografia…). Claro que isso nada tem a ver com a beleza exata da poesia de Cabral. Ele que, além do mais, era especialista em poemas sobre rios.

A boa biografia —”João Cabral de Melo Neto: Uma Biografia”, de Ivan Marques— conta que o poeta veio ao Rio em 1940 pela primeira vez, aos 20 anos de idade, para conhecer, por meio do também poeta Murilo Mendes, o também poeta Carlos Drummond de Andrade. Era outro Rio, mas o mesmo. A educação pelo Rio, de um lado.

De outro lado, achei o Rio absolutamente mal-educado e agressivo, cidade barulhenta, onde os motoristas buzinam excessivamente e as pessoas falam alto demais nas ruas. Não se trata de o Rio ser pior do que São Paulo, no geral. Mas é diferente (tem sua própria lei, no trânsito e no morro —a falta de lei, na verdade).

Me disseram que minha impressão da falta de educação é porque fiquei em Copacabana, onde a deterioração urbana é mais visível. Tivesse ficado em Ipanema, na Gávea ou no Leblon etc. teria sido outra coisa. Outra coisa: o Rio é uma ditadura de classe. Educação pelo Rio.

Não é que o Rio seja pior do que São Paulo no que se refere à atmosfera de crime e medo —mas, no Rio, o grau de crueldade é mais alto. O Rio é o mais criminal dos estados criminais do Brasil. É lá que se matam mais negros mais livremente, com permissão dos órgãos públicos.

Segundo a Rede de Observatórios de Segurança, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, a polícia do Rio matou, em 2020, 939 negros (contra 153 brancos). Já a polícia de São Paulo, no mesmo ano, matou 488 negros (contra 281 brancos). É a educação pelo Rio, por comparação com o resto.

“São Paulo é mais organizado. Até a pobreza é mais organizada em São Paulo”, me disse um taxista do Rio. Taxistas do Rio seriam protagonistas do meu romance de costumes, personagens-chave para uma educação pelo Rio. Assim é que um segundo taxista quis nos vender um sítio em Xerém, Duque de Caxias, Baixada Fluminense.

Ele nos mostrou as fotos, “sítio com piscina, lindo”, disse o motorista evangélico, da Assembleia de Deus, “e tudo como posse, sem escritura, porque lá ninguém paga imposto pra governo não. E Xerém é a cidade mais segura do Rio. Não troco Xerém por Leblon, porque aqui vão roubar teu celular, vão te dar tiro. Em Xerém tem milícia? Tem. Mas é milícia que está com os políticos de lá, e então não cobram taxa dos moradores, os políticos não querem isso lá. E se sabem de alguém no tráfico de drogas lá, eles matam na hora. Aquilo é um paraíso”.

É o Rio mafioso. Impossível entender a escolha de políticos que o Rio faz: Sérgio Cabral, Witzel, Garotinho são a cara da contravenção, do arbítrio, do racismo, da opressão de classe, da impunidade para a matança generalizada.

O Rio tortura, mata crianças negras sem origem, que roubam passarinhos. Não se pode esquecer que o Rio é o berço do bolsonarismo, a merda em que o país afunda. Em São Paulo, pelo menos se sabe de onde vêm a perversidade e a desfaçatez de um João Doria, por exemplo. O Rio é obscuro-claro, cristão-anticristo.

Minha conclusão é a de que não posso viver no Rio, porque a catástrofe fluminense-carioca é ainda maior do que a minha catástrofe pessoal (de alguém que não fez nada para evitar que seu próprio país caísse na merda em que se encontra). Não fiz nada. O Rio me jogou na cara essa impotência.

O Rio de Janeiro é pedra sem poesia, embora empertigado (com certa razão, porque ali viveram tantos nomes importantes: Manuel Bandeira, Drummond de Andrade, Clarice Lispector, João Cabral). É provinciano: ostenta instituições inúteis, imperiais como a Academia Brasileira de Letras, e se curva à hegemonia nefasta da Rede Globo.

O Rio daria um romance de costumes ruim, fosse eu quem o escrevesse. É que o Rio se acha, uma ditadura de classe maravilhada consigo mesma. Mas o Rio é apenas nossa própria catástrofe nacional escorregando morro abaixo.

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