Para militares, Vila Kennedy, considerada ‘laboratório’, passou por evolução e pode ser gerido pela polícia. Para críticos, mudança mostra improviso e despreparo
Passado pouco mais de um mês do início da intervenção federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro, o Exército confirmou, na terça-feira (20), que pretende diminuir sua presença na Vila Kennedy, na zona oeste da cidade. A “redução gradual” da presença dos militares deve ocorrer em até três semanas.
A importância desse anúncio está no fato de a comunidade ter sido mencionada pelos interventores como um laboratório para as ações das Forças Armadas no Rio.
O estado está sob intervenção federal desde 16 de fevereiro de 2018, a partir de um decreto do presidente Michel Temer – algo sem precedentes desde a Constituição de 1988.
Mas as Forças Armadas já atuavam no Rio de Janeiro por meio das operações GLO (Garantia da Lei e da Ordem), a mais recente iniciada em julho de 2017.
A Vila Kennedy foi palco de ações polêmicas do Exército, como o fichamento ou sarqueamento de moradores.
Nos últimos dias, as barreiras instaladas por criminosos para impedir o acesso à comunidade foram removidas pelo Exército, mas não foi anunciada nenhuma prisão de líderes do Comando Vermelho, facção que age na região, nem grandes montantes de apreensões de armas e de drogas.
O Exército diz, no entanto, que agora há condições para que a Polícia Militar volte a cuidar do policiamento no local – a corporação também está sob o comando do interventor, general Walter Braga Netto.
As Forças Armadas podem retomar as operações a qualquer momento, quando for necessário, dizem os interventores.
Qual o significado da Vila Kennedy
A ação militar no Rio já foi chamada de laboratório para o Brasil. E a ação na Vila Kennedy, de laboratório para o estado. O local fica na zona oeste, perto da Vila Militar, bairro planejado que abriga diversas instalações das Forças Armadas.

Nexo 18/03/2018

Foi na rodovia que liga São Paulo ao Rio, no trecho que passa perto da Vila Kennedy, que homens armados mataram o sargento do Exército Bruno Cazuca no mês de fevereiro. O militar viajava vestido de civil, mas trazia a farda no banco de trás do carro. Ele foi atacado por oito homens em dois carros.
Silêncio oficial sobre os resultados
A falta de divulgação dos objetivos concretos da intervenção federal no Rio é uma das maiores críticas contra a iniciativa até agora.
Os militares não apresentaram publicamente nenhum plano de trabalho estruturado. Também não há divulgação pública de metas de redução da criminalidade.
A pressão por resultados aumentou ainda mais após o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista, Anderson Pedro Gomes, no dia 14 de março.
Marielle vinha denunciando abusos atribuídos a policiais militares na região de Acari, que está sob o comando do 41º Batalhão da PM, e sua morte ganhou repercussão internacional.
Em entrevista à BandNews FM, na segunda-feira (19), o general do Exercito Richard Nunes, secretário de Segurança Pública designado pelo interventor no Rio, disse que “nenhuma hipótese está descartada” nas investigações.
O Nexo perguntou ao Comando Militar do Leste quais os resultados colhidos depois de um mês de ações na Vila Kennedy, mas não obteve resposta para essa pergunta precisamente.
As informações extra-oficiais
Diante da opção dos interventores por uma linha de comunicação discreta e até lacônica, professores da Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército), reunidos sob o nome de Observatório Militar da Praia Vermelha – nome do local onde se situa a escola -, têm atuado como analistas civis da intervenção.
Um desses acadêmicos, Guilherme Dias, doutor em relações internacionais e estudos estratégicos na Eceme, analisou os aspectos operacionais da decisão de reduzir as ações do Exército na Vila Kennedy.
Ele disse que “a ação [na Vila Kennedy] serve de modelo” e que um dos objetivos é “criar as condições para que as polícias possam cumprir as suas atribuições, cumprir os mandados em aberto, fazer o patrulhamento e consolidar a presença nas áreas que antes estavam bloqueadas pelo crime organizado”.
De acordo com Dias, “o plano apresentado era estabilizar a região, fazer a retirada das barreiras, o patrulhamento durante o dia e gradualmente substituir o contingente do Exército pela Polícia Militar junto de outros agentes públicos que vinham tendo dificuldade para operar na região”.
Perguntado sobre os planos dos interventores de expandir essas ações para outras comunidades do Rio, Dias afirmou que isso será feito “à medida em que os recursos [financeiros] forem liberados” pelo governo federal. De acordo com ele, há ações em “stand by devido especialmente a questão orçamentária, que só agora está sendo solucionada”.
Na terça-feira (20), o comandante do Exército, o general Eduardo Villas-Bôas, disse esperar o repasse de R$ 1,5 bilhão para financiar a intervenção no Rio só neste ano. O presidente Michel Temer falou em repasse de R$ 1 bilhão. O cálculo para sanar salários atrasados e outros deficits da área de segurança pública no Rio chega, no entanto, a mais de R$ 3 bilhões.
Dias disse que, quando esse dinheiro chegar, será possível “intensificar as ações em outras regiões, não só na capital, mas também na região metropolitana, Costa Verde”. Ele citou nominalmente ações contra “roubo de carga, tráfico de drogas e contestação do poder do Estado”.
Nem o especialista da Eceme, nem o Comando Militar do Leste mencionam nominalmente ações de combate a milícias, formadas por policiais, bombeiros e agentes prisionais da reserva que controlam algo em torno de 160 comunidades no estado, vendendo proteção a moradores e serviços clandestinos.
As críticas ao ‘improviso’
Silvia Ramos, especialista em segurança pública e formação policial, membro do Observatório da Intervenção, classificou o anúncio de saída da Vila Kennedy como “mais uma surpresa entre muitas da intervenção”.
A decisão do Exército confirma, na visão dela, “que as operações estão sendo feitas na base do improviso, o que transmite uma imagem muito ruim para uma população que aguarda com ansiedade algum sinal de alívio”.
Ramos diz que a passagem do Exército pela Vila Kennedy não deixou “herança perene, o que é espantoso, pois remover barreiras da comunidade qualquer um conseguiria”.
Em relação à informação de que novas ações serão feitas quando houver liberação de recursos adicionais pelo governo federal, Ramos lembra que “esse é o tipo de argumento que a Secretaria de Segurança Pública do Rio vinha usando antes da intervenção”.
Para ela, esse tipo de postura “faz perdurar a sensação de que a área segue sem comando” e de que os militares, tanto quanto os civis que comandavam a Segurança Pública antes da intervenção “se colocam como vítimas impotentes diante de um problema maior”.