Moradores de Rocinha e Cidade de Deus dizem não temer fim das UPPs

Viatura estacionada na entrada da Rocinha - Brenno Carvalho / Agência O Globo

Comunidades podem perder as unidades; vítimas de rotina de violência dão suas opiniões

RIO — Na quarta-feira da semana passada, numa tarde ensolarada, o coordenador do Complexo Esportivo da Rocinha, Carlos Henrique Santos, recepcionava crianças na portaria do equipamento. Aquele poderia ser mais um dia comum da semana, e foi. Pois os acontecimentos que se sucederam a partir de então são, infelizmente, cada vez mais comuns na rotina dos moradores.

— Olha aí, começaram os “pipocos”, vamos ter que suspender as atividades no campo e na piscina — disse Santos, referindo-se ao início de um tiroteio, o 93º na Rocinha apenas em 2018, segundo o aplicativo Onde Tem Tiroteito, e que resultou na morte de um PM, deixou três pessoas feridas e causou o fechamento da Autoestrada Lagoa-Barra.

Em setembro do ano passado, o traficante Rogério 157, preso há seis meses, se virou contra o seu antigo chefe, o Nem da Rocinha, preso desde 2011. A disputa pelo comando do varejo das drogas na comunidade deu início a um quadro de violência jamais visto na região, segundo moradores.

A situação fez com que a Rocinha fosse citada num estudo elaborado no ano passado por uma comissão de oficiais do Estado-Maior e da Coordenadoria de Polícia Pacificadora da Polícia Militar sobre a situação da segurança na cidade. O documento conclui que 12 UPPs já não são eficazes em fazer patrulhamento nas comunidades onde estão instaladas, além de terem perdido o apoio da comunidade. Entre elas estão a da Rocinha e a da Cidade de Deus. Com a intervenção federal no Rio, o estudo, que havia sido engavetado, voltou a ser levado em conta. O Gabinete da Intervenção Federal não confirma o fim destas UPPs, embora uma reportagem do GLOBO anunciando o projeto de extingui-las, bem como o de fundir outras sete, tenha sido publicada no site oficial do Ministério da Defesa.

Além das UPPs de Rocinha e Cidade de Deus, seriam extintas as de Caju, Camarista Méier, Coroa/Fallet/Fogueteiro, Prazeres, Lins, São Carlos, São João e Mangueirinha. As de Batan e Vila Kennedy já foram fechadas. A Secretaria estadual de Segurança estuda transformar algumas unidades em batalhões com perfil operacional, caso da Rocinha — onde, segundo o diagnóstico da PM, agentes da UPP pararam de patrulhar 51% do território. A unidade tem o maior contingente de policiais entre todas as UPPs: cerca de 700 homens. Se aprovado, o efetivo do novo batalhão seria mais enxuto, e contaria com o apoio do Batalhão de Choque e do Bope, que seguiriam ocupando a favela.

Rocinha e Cidade de Deus foram citadas entre as cinco comunidades cariocas com UPP onde houve mais tiroteios nos cem primeiros dias do ano, segundo o aplicativo Fogo Cruzado. Moradores de ambas ouvidos pela equipe do GLOBO-Barra mostram indiferença quanto à permanência ou extinção das UPPs, por achar que elas hoje são meramente decorativas.

— UPP aqui é a mesma coisa que nada. E a intervenção federal, nunca vimos — diz Santos, que há três anos coordena o Complexo Esportivo da Rocinha. — Quando eu cheguei aqui, era mais calmo. Agora, quando começa tiroteio, a gente tem que parar as atividades. A ordem é da própria Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude. A nossa caixa d’água tem até marca de tiro.

Vidas em sobressalto. A Rocinha, na tarde de quarta passada: minutos depois, um tiroteio causaria uma morte e o fechamento da Autoestrada Lagoa-Barra / Brenno Carvalho

O projeto conta com 800 crianças inscritas em dez atividades. Mesmo com a escalada da violência, o número não caiu, diz Santos, já que essa é, segundo ele, a única opção que os jovens têm de praticar esportes no local.

O semblante dos moradores da Rocinha hoje expressa medo. A resistência em falar sobre a violência na comunidade evidencia o estado de tensão permanente; alguns dos abordados pela equipe disseram preferir não dar entrevista para se preservar de um maior desgaste mental e emocional. Uma comerciante afirmou que “tanto faz se a UPP acabar”. Fez mais alguns comentários e, logo depois, censurou-se, dizendo que nem poderia estar falando com o repórter, por ser muito conhecida na Rocinha.

— A Polícia tem que fazer seu trabalho, mas também tem que respeitar o morador, coisa que ela não faz. Moro aqui há muitos anos e nunca vi uma situação tão ruim — afirma.

Além de confrontos entre bandidos, a comunidade tem tem sido palco de denúncias envolvendo policiais, sendo o caso mais famoso o do pedreiro Amarildo de Souza, que desapareceu, em 2013, após ser levado para a sede da UPP.

Outra moradora, estudante universitária, mudou-se cedo para uma cidade do interior e retornou à Rocinha há cinco anos. Recentemente, fez intercâmbio em Omã e na Síria, e afirma que não há muita diferença entre o que viu no Oriente Médio e o que acontece em sua comunidade.

— Posso te dizer que a guerra lá é tão ruim quanto a situação aqui. Desde setembro, já caminhamos para quase 90 mortos — diz.

A jovem ainda não tem opinião formada a respeito da possibilidade de extinção da UPP. Diz que é preciso primeiro saber como seria, na prática, a transição que levaria à criação de um batalhão:

— A UPP é uma entidade muito subjetiva. Ela existe, mas para quem? Acho que na prática sua presença não interfere muito (na rotina).

Na Cidade de Deus, 2016 foi o marco

Na Cidade de Deus, a situação não é muito diferente, e a rotina de tiroteios começou há mais tempo. Segundo moradores, a Olimpíada marcou o fim do prazo de validade da UPP local. Fechamentos da Linha Amarela em consequência de tiroteios na comunidade também são tristemente frequentes. Na quinta-feira passada, houve mais um.

A guerra na Cidade de Deus conta com um agravante em relação à da Rocinha. Na região, não há uma disputa interna em relação ao comércio de drogas, mas sim uma guerra entre traficantes locais e milicianos da Gardênia Azul, que já tentaram tomar pontos de venda próximos. O quadro, inclusive, foi detalhado pelo então comandante da UPP da Cidade de Deus, major Daniel Cunha, à equipe do GLOBO-Barra, no ano passado. Hoje, o comandante está na UPP da Rocinha.

Morador do Karatê, região considerada como a mais perigosa da Cidade de Deus, Thiago Oliveira diz que o fim da UPP provavelmente não “vai mudar em nada” a rotina local, apesar de temer que futuras operações policiais se tornem mais agressivas se isso acontecer. Para ele, o que precisa mudar é a forma como os agentes entram na favela.

— A convivência entre polícia e morador nunca foi boa. Mas não consigo imaginar como vai ser (se a UPP acabar). Melhorar, acho que não vai. Sempre houve imprudência e corrupção da polícia. A UPP tentava, principalmente através da corrupção, fazer acordos de trégua com bandidos, pelo menos em alguns dias, para eventos específicos. Agora, pode ser que, quando a polícia for fazer uma operação, os tiroteios sejam mais intensos — observa Oliveira, afirmando que os confrontos entre tráfico e milícia aumentaram após a intervenção federal.

Oliveira menciona outra atividade que pode ser prejudicada com o fim da UPP: as aulas ministradas por policiais na comunidade, em especial as de jiu-jítsu e judô.

— O fim dessas aulas pode prejudicar crianças — diz.

Desempregado, ele diz que a violência sempre o afetou:

— Às vezes eu não conseguia ir para a escola ou para o trabalho; já cheguei a perder oportunidades de emprego por causa disso. Você não quer arriscar a sua vida sempre.

Barricadas do tráfico foram flagradas na Avenida Edgar Werneck, entrada da Cidade de Deus, em março | Márcio Alves / 7-3-2018

Para o pastor Heron Jorge de Souza, presidente do Conselho de Pastores da Cidade de Deus e Jacarepaguá, o fim da UPP pode até ser bom.

— Os carros da polícia vão circular, porque hoje eles só ficam parados na base. Existem várias bocas de fumo aqui; fazer rondas pode ser positivo — observa.

Resumindo a trajetória da UPP na Cidade de Deus, Souza diz que foi como a comunidade esperava: algo que traria algum benefício imediato, mas depois deixaria de ter efeito. Segundo ele, logo após o início do projeto na comunidade, em 2009, a melhora da segurança foi evidente. Mas a relativa tranquilidade só durou até 2016.

— No início, até moradores que tinham deixado a Cidade de Deus tentavam voltar, mas faltavam casas para alugar. Os primeiros meses de UPP foram difíceis, claro, pelo impacto, mas depois tivemos bons períodos. Apesar disso, todo mundo sabia que não ia durar até depois da Olimpíada. No início de 2016, o investimento começou a cair; e o efetivo, a ser deslocado — diz o pastor.

A violência já obrigou Souza a mudar sua rotina. No ano passado, seu filho teve que trocar de colégio, pois a turma em que estudava, na Escola Municipal Leila Barcelos, foi extinta. O motivo: a prefeitura não conseguia encontrar professores que aceitassem trabalhar no local. Hoje, o menino estuda na Escola Municipal Alberto Rangel, que também já ficou no caminho de tiroteios. Para ajudar a aliviar a situação na comunidade, o pastor faz um trabalho social com moradores, inclusive tentando dar oportunidades a jovens ligados ao tráfico.

Especialistas opinam

Para o sociólogo Ignacio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, as UPPs da Cidade de Deus e da Rocinha hoje são, de fato, problemáticas. Ele frisa, porém, que transformar a UPP da Rocinha em um novo batalhão, possibilidade aventada no relatório produzido pela Polícia no ano passado, não é algo necessariamente positivo.

No início de maio, um intenso tiroteio na Cidade de Deus assustou moradores da Linha Amarela | Pablo Jacob / 3-5-2018

— É preciso saber o que vai ser feito. É inadmissível a intervenção não divulgar os critérios exatos que definirão a estratégia de segurança. Não sei se sem UPP vai ficar pior ou melhor, mas precisamos de mais esclarecimentos — diz Cano.

O sociólogo ainda mostra preocupação com possíveis represálias a moradores se as UPPs forem extintas. E, como eles, prevê o aumento do número de incursões policiais:

— A UPP nasceu justamente para diminuir o número de operações policiais. Mas na Rocinha, desde o caso Amarildo, e na Cidade de Deus, também há algum tempo, isso não acontece, já que muitas vezes chamam o Bope ou o Batalhão de Choque para reforço.

Ano passado, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESec), da Universidade Candido Mendes, realizou uma pesquisa com moradores de 37 comunidades com UPP. Por uma pequena margem, a maioria disse que preferia a permanência das unidades, mas com mudanças. Para Silvia Ramos, coordenadora do Observatório da Intervenção do CESec, extinguir UPPs não é bom.

— Recuar nas políticas de proximidade e adotar confrontos em favelas equivale a um retrocesso de mais de dez anos — afirma, destacando que índices criminais foram reduzidos, principalmente nos primeiros anos. — Retirar as UPPs e não criar programas comunitários para substituí-las é péssimo.

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