Um dos temas mais polêmicos da campanha presidencial de 2018 é a flexibilização do Estatuto do Desarmamento e a liberação do porte de armas para os cidadãos, como defendem, com algumas nuances, três candidatos: Álvaro Dias (Podemos), Jair Bolsonaro (PSL) e João Amoêdo (Novo). Para analisar essa proposta, a reportagem da RFI esteve no Rio de Janeiro e ouviu Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Candido Mendes.
Silvia Ramos monitora a Intervenção Federal no Rio há mais de sete meses. Com uma experiência de 25 anos no acompanhamento de políticas de segurança pública, ela estima que o país passa por um momento muito regressivo.
Ramos considera extremamente grave que partidos políticos assumam o discurso de que “bandido bom é bandido morto, contra os criminosos nós vamos atirar para matar, é muito bom que existam policiais que matem 10, 15 ou 20”. Não é novidade que esse discurso existia em setores da sociedade brasileira, mas ele era dito de maneira reservada. Ser assumido por um candidato à presidência da República se torna um elemento grave, na avaliação da professora universitária. “Esta é uma campanha de extrema direita, e não de direita, o que não acontecia no Brasil desde a ditadura militar (1964-1985)”, constata.
Para a especialista, quando outros candidatos “imaginam que liberar as armas é um direito”, isto favorece um setor da opinião que defende ações contra a lei e a legalidade. Não é normal achar que todo criminoso tem de morrer, que ele não merece ser julgado e preso. “Achar que as execuções extrajudiciais são legítimas e que os policiais devem atirar para matar suspeitos é um discurso que pensa que o suspeito é sempre o jovem, negro, da favela e da periferia e não os próprios filhos das pessoas que acreditam nisso”, argumenta.
Desgaste dos direitos humanos
A convivência prolongada com a violência além de exasperar os brasileiros também comprometeu a luta pela defesa dos direitos humanos.
“Nós devemos reconhecer que fizemos alguma coisa errada no passado ao transmitirmos para uma parte expressiva da população a ideia que defender direitos humanos é defender direitos de criminosos. Hoje, o setor mais à direita da sociedade pegou esse discurso e está na crista da onda se favorecendo da sensação não só de medo de muitos setores da população, mas também da sensação de impotência e de desgaste. Esse desespero, essa ausência de respostas para os temas da violência e da criminalidade, que deixamos de dar durante muitos anos no Brasil, está favorecendo a ideia de que pode vir um salvador da pátria e resolver tudo na base da bala, na base da ilegalidade. Temos que reencontrar o caminho dos direitos e da legalidade, mas não sei como será isso nos próximos anos.”
Ineficiência da Intervenção Federal no Rio
No Observatório da Intervenção do Cesec, pesquisadores monitoram o dia a dia da intervenção federal no estado. O Observatório conta com o apoio de uma rede de organizações defensoras de direitos, de um conselho de ativistas de favelas e de três entidades que recolhem dados sobre violência diretamente ao lado de moradores. Em relatórios mensais, o centro de estudos analisa a evolução das operações.
A decisão do presidente Michel Temer de entregar o setor da segurança, que envolve violência e criminalidade, aos militares produziu distorções, afirma Ramos, e com resultados insatisfatórios. Os crimes contra a vida – homicídios, mortes decorrentes de intervenção policial e latrocínios – continuam em patamares muito altos, como estavam antes, segundo o Observatório. Alguns aspectos pioraram muito, como os crimes por intervenção das forças policiais. De agosto de 2017 a agosto de 2018, eles cresceram 150%. “Há uma escalada de policiais e militares nas ruas matando opositores, e isso é típico neste tipo de intervenção”, explica Ramos. A questão é que os tiroteios matam supostos criminosos e também moradores da cidade que deveriam estar sendo protegidos pelas autoridades.
“Em 25 anos, nunca tínhamos visto um período de prestação de contas tão fechado. O Instituto de Segurança Pública continua publicando dados sobre homicídios, roubos e outros índices de criminalidade, mas não sabemos quais são os planos da intervenção, quanto ela custa e nem aonde pretende chegar. Existe uma absoluta falta de diálogo com as autoridades municipais e estaduais, e zero de transparência”, lamenta a especialista.
Guerra de facções
O Rio de Janeiro enfrenta duas grandes forças em oposição nesse momento. Facções do narcotráfico combatem grupos de milicianos, compostos por militares ou ex-militares, policiais ou ex-policiais, guardas municipais e bombeiros que também objetivam dominar áreas da cidade com fins lucrativos. Os paramilitares lutam para impor taxas de segurança, ganhar participação na venda de gás de cozinha, de serviços de televisão a cabo – conhecidos pelos cariocas como “gatonet” -, para controlar a distribuição de água mineral, entre outras prestações.
“Tanto os milicianos quanto alguns grupos do tráfico não brigam só pela venda de drogas e de segurança. Eles entram em disputa para saber quem vai ser o mediador entre a vida naquele território e os serviços da cidade”, explica a coordenadora do Cesec. Ramos constata que os grupos de milicianos cresceram muito nos últimos anos porque a própria polícia preferiu deixar determinadas áreas submetidas a eles, mas depois perderam o controle.
“Hoje, um comandante de polícia de um batalhão da polícia militar pode estar dentro de sua sala e ser atingido pelas costas porque o crime pode estar dentro do batalhão. Um sargento ou outro comandante pode ser o chefe da milícia daquele local onde está o batalhão. Além disso, temos uma terceira força que muita gente chama de ‘comando azul’, que é o fato de muitos policiais estarem envolvidos na criminalidade. Isso é o que explica essa quantidade imensa de tiroteios no Rio de Janeiro nos últimos anos e que se acentuou nos últimos meses.”
Uma característica peculiar à criminalidade fluminense é o uso de armas longas, os fuzis de guerra muito letais. Ramos lembra que o Rio de Janeiro tem uma taxa de homicídios muito alta, mas ainda menor que algumas cidades do Nordeste. Para a especialista, combater esse tipo de violência com tanques de guerra não é produtivo para desarticular quadrilhas. “Esse tipo de intervenção é muito barulhento, mostra tropas na rua, caminhões do Exército, mas a efetividade dela é muito pequena”.
Ramos recomenda uma diminuição drástica dos tiroteios, começando pela polícia. Ela acredita que é possível atenuar o número de mortes se for adotada uma política de segurança pública que sinalize tanto para criminosos quanto para a população que o dever da polícia é proteger a vida.
Uma política séria de segurança pública também deve hierarquizar o combate ao crime, começando pela elucidação de chacinas, de homicídios com um grande número de vítimas, praticados pelos criminosos mais perigosos. Outro aspecto é aumentar a fiscalização no tráfego de cargas, para evitar que os carregamentos de armas e munições cheguem às comunidades. “As apreensões de armas e munições feitas pela polícia rodoviária fora do âmbito da intervenção federal têm sido mais eficientes do que as operações nas favelas, e sem disparar um tiro”, assinala Silvia Ramos.