Em maio último, foi aprovado pelo Senado o PLC 37, projeto que altera a política nacional sobre drogas e que tramitava há quase 9 anos no congresso. A votação foi retomada às pressas em uma tentativa de conter o então agendado julgamento sobre a descriminalização do uso de drogas no Supremo Tribunal Federal, que acabou não acontecendo. O projeto traz mudanças importantes e que vão na contramão de experiências internacionais bem sucedidas em relação ao tratamento do uso problemático e ainda das discussões sobre novos modelos de regulação das drogas.
A nova Política Nacional sobre Drogas já nasce velha. Isto porque ela aposta, mais uma vez, na fracassada lógica de “guerra às drogas” para justificar ações repressivas de combate a estas substâncias, bem como em um modelo de tratamento do uso problemático muito restrito que não consegue dar conta da multiplicidade de usos de drogas que podem existir. Em termos práticos, as principais mudanças propostas por essa nova lei dizem respeito ao aumento da pena de tráfico de drogas de 5 para 6 anos, focando nas “circunstâncias” para diferenciar o usuário do traficante; e na substituição da redução de danos pela abstinência no trato do uso de drogas, priorizando as comunidades terapêuticas.
São muitas as implicações destas diretrizes. Em relação ao aumento da pena para tráfico, trata-se de uma medida que apenas reforça a orientação racista e excludente da política de drogas. Isto porque, historicamente, a política de drogas brasileira foi desenhada para servir como instrumento de controle de determinados grupos sociais – como o caso da da maconha, criminalizada por ser associada a negros escravizados no século XIX -, fato que perdura até os dias atuais de maneiras diversas. Hoje, a população carcerária é majoritariamente negra (cerca de 61% dos presos são negros e pardos); em relação a mortes violentas, 74% dos homicídios é de negros; e, no caso de serem pegos com drogas, negros são processados com menores quantidadesquando comparados a brancos. Assim, o encarceramento de pessoas que se relacionam de alguma forma com o tráfico de drogas atinge prioritariamente jovens negros que atuam no varejo, deixando de lado quem de fato se beneficia com este mercado em grande escala.
Além disso, quando estabelece a análise das circunstâncias em que o ato foi praticado para diferenciar usuários e traficantes, a decisão fica nas mãos do policial. Além de depositar em uma única figura o poder de decidir sobre essa diferenciação, estes parâmetros são bastante problemáticos na medida em que o alvo, novamente, são os territórios periféricos.
Em relação ao tratamento do usuário de drogas, a atual política se mostra bastante problemática. Ao substituir a estratégia de redução de danos pela abstinência, excluem-se aqueles usuários que não conseguem, não podem ou não querem cessar por completo o uso. É fundamental que uma política pública seja pensada de maneira universal e visando a abarcar seus mais diversos públicos, realidade não contemplada com esta mudança. É importante frisar que ambas as abordagens – redução de danos e abstinência – não são excludentes, mas complementares e a própria redução de danos pode visar à abstinência a longo prazo. O intuito é que o usuário possa optar pela forma que mais se adapta às suas necessidades.
Além disso, a política estabelece as comunidades terapêuticas como protagonistas neste processo. Este modelo é bastante problemático já que não existe uma fiscalização que assegure que o usuário tenha seus direitos mais fundamentais respeitados, apresentando, inclusive, inúmeras denúncias de violações de direitos relacionadas a maus tratos nestes espaços. Muitas, inclusive, possuem forte viés religioso, colocando o uso de drogas no campo da espiritualidade e não no da saúde mental. O resultado é a desestruturação de serviços de orientação territorializada, como são os Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas (CAPSAD), que fornecem tratamento gratuito a usuários que assim o desejem.
Novamente, os mais afetados pelas mudanças desta “nova” política de drogas são os usuários em situação de extrema vulnerabilidade social. Ao estabelecer a abstinência como condição fundamental e imediata para o tratamento, desconsidera-se a complexidade de questões relacionadas ao uso de drogas, que envolvem o subemprego, violências de todo o tipo, ausência de moradia e condições dignas de vida etc.
Caminhos possíveis
Como, então, pensar uma política de drogas que leve em conta questões tão complexas? Um ponto de partida, já sabemos, é apostar em novas medidas de fato, como diversos países vêm experimentando. Falar em legalização de drogas é pensar em formas alternativas a políticas repressivas, entendendo que há inúmeras possibilidades de controle por parte do Estado. E não se pode falar no assunto sem considerar quem mais sofre com os efeitos da guerra às drogas: a juventude negra favelada e periférica. Entender que o racismo, em sua mais diversa perversidade, desenhou e continua a orientar a atual política de drogas é, sobretudo, olhar para os possíveis caminhos de uma nova política de drogas e o que eles significam.
Estes caminhos incluem pensar, em termos práticos, como jovens varejistas de drogas se colocarão no mercado de trabalho caso as drogas sejam legalizadas ou reguladas. Caso não sejam legalizadas, inclui refletir sobre os efeitos de uma possível descriminalização de seu uso: estabelecer critérios objetivos de quantidade de drogas para diferenciar usuários e traficantes – como já esteve em pauta no Supremo Tribunal Federal – de fato resolve a questão, considerando que a orientação do sistema de justiça criminal permanecerá racista? Em relação ao usuário, como ampliar o acesso a serviços públicos de tratamento, tão escassos nas favelas e periferias, sem que abstinência seja o único caminho possível?
É esse tipo de reflexão que o Movimentos – um grupo de jovens de favelas e periferias que debate política de drogas a partir do ponto de vista de quem sofre seus efeitos – tem feito. O entendimento do grupo é de que não é mais possível falar sobre o tema sem a perspectiva racial. Se quisermos pensar em soluções que não perpetuem o racismo e a desigualdade, precisamos partir de uma ótica que leve em conta quem é atingido por eles.
Por fim, não existe uma fórmula mágica para se pensar política de drogas. Países diferentes lidam com esta questão cada um à sua maneira. O que sabemos, no entanto, é que insistir em modelos que já se mostraram ineficazes não é uma solução válida, mas que atende a interesses de grupos específicos. Não à toa quem mais sofre com esta política são pessoas e territórios já marginalizados, para onde são direcionadas operações policiais justificadas pelo combate a estas substâncias, deixando como rastro mortes e violações de direitos.
(*) Paula Napolião é pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) nos eixos Drogas e Justiça, organização membro da Rede Justiça Criminal.