É essencial observar como raça e racismo são tratados na produção de conhecimento sobre segurança pública
Assim como diversos outros sistemas de poder, o racismo possui distintas expressões. Como pesquisador preto e favelado que atua na área da violência e segurança pública, sempre foi muito evidente para mim que o racismo é central para compreendermos como a violência por parte do Estado funciona. As estatísticas levantadas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que 75% das pessoas mortas em “intervenções policiais” entre 2017 e 2018 eram negras, e que entre 2007 e 2017 os homicídios de negros cresceram 33,1%, enquanto os de não negros aumentaram 3,3%.
Os dados sobre homicídios são a ponta do iceberg quando o assunto é racismo e segurança pública, e os números são uma aparição bastante evidente da conexão entre os dois. Irei contextualizar uma outra expressão do racismo, mais sutil, mas tão relevante quanto aquela apresentada pelos dados estatísticos. Eu espero que ela fique bem escura no decorrer desse texto.
Sobre os dados, acredito que pesquisadores e pesquisadoras do campo da violência e segurança pública concordariam comigo que o passado colonial-escravocrata do país –e o racismo que surge dele– é importante para diagnosticarmos o porquê de algumas pessoas acordarem com barulho de tiros e disparos de um helicóptero usado na Guerra do Vietnã, enquanto outros despertam com o som das ondas do mar.
Então, por que isso nem sempre aparece em livros, estudos e pesquisas sobre segurança pública? Por que raça e racismo são regularmente postos em uma posição secundária em análises propostas pelo campo? Quando eu falo posição secundária quero dizer que raça e racismo não são centrais no contexto social, ou seja, são um problema, mas não o problema. Existe uma diferença substancial nessa distinção.
A literatura sobre violência e segurança aborda a temática racial de maneiras distintas. Eu destacaria três formas que parte da produção acadêmica sobre como a segurança pública trata o racismo. Na primeira, o racismo é fundamental, sem enxergá-lo como central, não é possível diagnosticar e muito menos oferecer uma solução para o problema. O segundo, o racismo é importante, mas não fundamental. Em algum momento teremos que lidar com ele, mas futuramente porque agora temos outras prioridades. E por fim, no terceiro o racismo não é mencionado, o problema da segurança pública é simplesmente falha no desenho das instituições.
Se você ler uma publicação que tenta encontrar o que há de errado com a segurança pública e a questão racial for tratada como a segunda ou terceira forma, fica evidente como raça e racismo são marginalizadas ou ocultadas nessa análise em questão. Podemos dizer que essa é uma sutileza do racismo que uma leitura atenta revela, aquela outra manifestação do racismo a qual eu me referi no início. Além disso, essa expressão do racismo nos diz muito sobre como a branquitude funciona. Cida Bento nos ensina sobre o pacto narcísico da branquitude, ou seja, a proteção dada por brancos e brancas ao seu próprio privilégio. Para Bento, esse pacto distorce o lugar desses indivíduos na reprodução das desigualdades raciais no Brasil, silenciando que alguém se beneficia do racismo.
O meu propósito aqui é o argumento de que precisamos olhar para o racismo na segurança pública para além das estatísticas. E não significa que dados não sejam importantes, muito pelo contrário. O ponto é mostrar que denunciarmos que as pessoas negras são as que mais morrem é insuficiente. É essencial observar como raça e racismo são tratados na produção de conhecimento sobre segurança pública, o que entendo como olhar para além da ponta do iceberg. É preciso realizar diagnósticos que tomem o racismo como base para que então possamos romper com os séculos de genocídio ao qual o povo preto está submetido. Só que, para isso, é necessário olhar primeiro para nossas próprias pesquisas e perguntemos como o racismo está sendo tratado: primeira, segunda ou terceira opção?
Minha intuição é que apenas a primeira forma de leitura sobre racismo pode gerar pesquisas, estudos, publicações e livros realmente antirracistas. E o motivo pelo qual o antirracismo é importante na produção de conhecimento é pra justamente não contribuir na manutenção desse sistema de poder que chamamos de racismo —o que ocorre mesmo que o objetivo seja justamente o contrário. Em outras palavras, como Bento nos chama atenção, é preciso que o racismo seja reproduzido pelas pessoas para que ele seja mantido e alguém se beneficiar disso.
Você mesmx, talvez.
Com isso, deixo o último ponto para reflexão: o que e a quem uma pesquisa sobre letalidade policial que desconsidera a centralidade do racismo beneficia? Qual o lugar da pesquisa sobre violência e segurança pública na luta de séculos por abolição? O que você como pesquisador ou pesquisadora tem feito? Você conhece pesquisas feitas por intelectuais pretas, faveladas e periféricas sobre a temática? Ou se vem das favelas e periferias não é conhecimento legítimo? Por que Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Alberto Guerreiro Ramos, Sueli Carneiro, Ana Flauzina, Silvio Almeida, Juliana Borges, dentre diversas pessoas, não estão presentes em suas referências?
E por fim, você está realmente na luta com a gente?
Pedro Paulo da Silva é cria do morro do Jacarezinho. É mestrando em relações internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e bacharel em relações internacionais pela mesma universidade, além de pesquisador da Rede de Observatórios da Segurança, iniciativa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.