Polícia a um real

Uma amiga descreveu a seguinte cena, que se passou quando chegava em casa em um táxi: eram 23 horas de um sábado, quando o carro em que viajava foi abordado por policiais que vigiam o entroncamento de duas ruas da Zona Sul. Sem hesitação o motorista expôs seus documentos ao PM, que os examinou atentamente e logo constatou que estavam absolutamente regulares. “Nada como andar com tudo em dia, não é companheiro?” Orgulhoso de sua previdência, o motorista pareceu entender o comentário daquele agente da lei como um sinal de que a abordagem se encerraria sem mais delongas. Mas a conversa se desdobrou em uma seqüência interminável de constatações, de ambas as partes, sobre as vantagens de obedecer à lei.

Minha amiga, inquieta, via o tempo e o taxímetro avançarem sem piedade, mas freou o impulso de interromper o diálogo. Afinal, refletia, “não queremos justamente que a polícia cumpra seu dever de nos dar proteção? É preciso contribuir para a ordem pública com alguma dose de paciência e alguns tostões adicionados ao preço da corrida”. Além disso, os vidros escuros impediam que ela fosse vista e seria desconcertante irromper de dentro do carro, para se dirigir ao policial naquelas circunstâncias.

A conversa entre os dois parecia ter chegado a um impasse, quando, finalmente, o policial tomou a iniciativa de perguntar ao motorista:

— Não vai deixar o “cafezinho”?

— Ih, companheiro, tô sem nenhum trocado, sério mesmo, e… tô com passageiro aqui dentro.

Visivelmente constrangido, o policial se apressou em liberar o taxista que, sem sinal de indignação, se disse acostumado àquele tipo de abordagem. Afinal, do que se tratava? De extorsão? Esmola? Assalto? Difícil saber.

A tal ponto se generalizou a cobrança de “pedágios” por parte de algumas patrulhas da PM, que já não é mais possível definir exatamente seu significado. Além das falsas blitzes, praticadas por bandidos, existem agora as multiblitzes, que podem combinar as mais diversas funções, das lícitas às ilícitas.

Se o cidadão ou a cidadã está em situação irregular, é evidente que liberá-lo(a), em troca do que quer que seja, configura ato de corrupção (ativa e passiva, não nos esqueçamos). Mas como classificar o pedido de um cafezinho, quando todos os documentos estão em dia, o pedinte tem em mãos uma metralhadora e veste o uniforme da Polícia Militar? Como nomear as situações que já se tornam mais do que corriqueiras, em que é “necessário” deixar um ou dois reais (sic!) para a polícia, quando se deseja cruzar determinadas ruas da cidade? O que dizer de um policial que numa barreira perfeitamente legal, em meio aos procedimentos previstos em lei, se encanta pela câmera do cidadão abordado e, de arma em punho, requer para si o material? E do rapaz, que chegando nas imediações da comunidade onde vive é interceptado por policiais fardados que, durante a revista, lhe retiram R$ 50 da carteira e partem, satisfeitos, anunciando o início de uma bela noitada?

Sabemos que essas histórias, que se acumulam na crônica cotidiana dos cariocas, têm suas vítimas preferenciais: homens jovens, não brancos e motoristas profissionais. Foi somente por estar invisível que minha amiga pôde assistir à triste demonstração de que uma parte, ao menos, da nossa polícia anda vendendo serviços, um tanto nebulosos, ao preço de uma xícara de café.

O surpreendente não é apenas a tranqüilidade com que alguns agentes uniformizados extorquem, assaltam e ameaçam. O que espanta também é que se tornou natural lhes deixar pequenas quantias, para evitar constrangimentos.

Com isso, parte da população se torna parceira do processo de degradação da segurança pública. Em certa medida, porque, acuada, já não consegue mais distinguir entre a corrupção clara, o roubo, a ameaça velada e a mendicância institucionalizada (tudo é possível quando se tem uma arma na mão e o poder de usá-la). Em parte, também, porque a cultura do jeitinho se instalou entre nós, na sua pior acepção.

Mesmo quando a única ameaça existente é fazer cumprir a lei, compra-se o “direito” de burlá-la sem aborrecimentos. A lei é sempre para os outros. Ou então é acionada na defesa de certos interesses particulares e logo ultrapassada, em nome desses mesmos interesses.

Não se trata de culpar a população pela falta de ética que corrói nossas instituições públicas. Isso seria tão primário como transferir aos usuários de drogas a responsabilidade pela existência do tráfico e da violência. Mas parece urgente incluir na agenda da cidadania uma discussão aberta sobre a cultura da corrupção. Tanto a que propicia e acoberta o desvirtuamento das funções institucionais, quanto a que libera a população para negociar com a lei e ainda acreditar que os corruptos são sempre os outros.

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