Um balanço divulgado na semana passada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a aplicabilidade da Lei Maria da Penha mostra que existem, atualmente, 150.532 processos tramitando nas varas especializadas de violência doméstica e familiar contra a mulher, cuja criação está prevista na Lei. Segundo o que foi divulgado pela mídia, dois anos e sete meses depois de sancionada a legislação, o relatório aponta que foram decretadas 11.175 prisões em flagrante e 915 preventivas. Dos 75.826 processos que já tiveram sentença, 1.808 levaram o réu para trás das grades – 2% do total. Em relação às medidas protetivas, como retirar o agressor de casa ou impedi-lo de aproximar-se da vítima, foram 88.972 pedidos desde a criação da lei, mas apenas 19,4 mil (ou 22%) deferidos, segundo o balanço.
Quando se observa o número dos processos em tramitação nas varas especializadas de violência doméstica e familiar contra a mulher, pode-se se ter a impressão de ineficácia do sistema judiciário, já que apenas 2% das condenações resultam em encarceramento. No entanto, os dados não fazem sentido se não forem contextualizados. Primeiramente, a Lei Maria da Penha não se destina necessariamente a promover o aprisionamento dos acusados, embora esteja alinhada com a tendência de endurecimento de penas. Por outro lado, basta um exercício de imaginação para perceber o impacto desastroso sobre o sistema penitenciário brasileiro, já sobrecarregado ao extremo, se as mais de 75 mil sentenças lavradas, desde a entrada em vigor da nova Lei, tivessem culminado na prisão do réu.
Para termos informações mais consistentes sobre a eficácia na aplicação da Lei, é preciso conhecer o percentual dos casos em que foi aplicada uma pena alternativa. Mais do que isso, é fundamental conhecer a natureza da pena e as condições de sua aplicação. Da mesma forma, faz-se necessário monitorar os resultados das prisões em flagrante e das prisões preventivas, para avaliar suas conseqüências, já que não parece muito provável que um estágio atrás das grades e o incontornável aprendizado da cultura da cadeia ajudem a reduzir as manifestações da masculinidade viril violenta.
Não se pode esquecer, ademais, que grande parte das mulheres que denuncia seus companheiros não deseja criminalizá-los, mas busca a intermediação de algum dispositivo capaz de interromper a violência, preservando alguma forma de relação. Muitas, inclusive, desistem de efetuar um registro de ocorrência quando são informadas do risco de que o denunciado venha a ser preso.
A violência doméstica não é abstrata, mas um fenômeno necessariamente relacional, indissociável de uma estrutura de afetos e de significados partilhados. Ainda que isso não possa absolutamente ser um pretexto para responsabilizar as vítimas pelas agressões sofridas, é um alerta para a necessidade de se compreender melhor as dinâmicas da violência conjugal e de levar em conta as demandas concretas das mulheres, nem sempre afinadas com o espírito punitivo da Lei. Para isso, seria necessário romper com o modelo dualista, ideologizado, que aprisiona os atores sociais em papeis fixos e imutáveis, como o do homem agressor e da mulher vitima.
Quanto ao fato de apenas 22% das medidas restritivas serem deferidas, é preciso saber em que condições elas foram solicitadas e as razões dos indeferimentos: só assim saberemos se esse instrumento está ou não sendo demandado na sua justa medida pelas organizações de defesa das mulheres e se os riscos de novas agressões estão ou não sendo negligenciados por parte da Justiça. Em suma, analisados friamente, fora dos contextos nos quais adquirem sentido, os dados nos dizem muito pouco sobre as tendências na aplicação da Lei, que, por sua vez, não deveria ser vista como uma legislação que aposte na violência, mas sim na mudança, no diálogo social.