O castigo nas mãos da comunidade

Nós, brasileiros, estamos acostumados a procurar no chamado mundo desenvolvido respostas para muitos problemas. Parece que está chegando a hora de começarmos a buscar inspiração em outros cantos deste planeta, por exemplo, junto a nossos irmãos africanos.

Entre 24 e 28 de novembro, estive no Zimbabwe participando da conferência A prestação de serviços à comunidade como alternativa à pena de prisão na África. O encontro foi organizado pela Penal Reform International, organizaçãonão-governamental com sede em Londres, que presta consultoria a países, principalmente na África e no Leste Europeu, interessados em promover reformas em seus sistemas penais visando, principalmente, à redução do uso da pena privativa de liberdade.

Estavam presentes representantes da maior parte dos países africanos, alguns europeus, americanos e latino-americanos, para conhecer a experiência absolutamente vitoriosa do Zimbabwe, na área da prestação de serviços à comunidade como alternativa à pena de prisão. Cheguei desconfiada e saí convencida de que temos muito a aprender com os zimbabweanos. Discutiram-se, inicialmente, às implicações de um sistema punitivo que fo levado para aquele continente pelos colonizadores e que não guarda nenhuma relação com as tradições dos povos africanos. Antes da era colonial não existiam prisões e os infratores eram punidos dentro e pela própria comunidade. Se uma cabra era :roubada, o ladrão era obrigado a devolvê-la e submeter-se à execração pública. Se um membro de uma tribo matava um integrante de outra tribo, a primeira deveria ceder um de seus membros que passaria afazer parte do grupo ofendido. Era necessário, agora, retomar antigos costumes, privilegiando atitudes mais identificadas com as raízes culturais africanas.

Ao longo dos anos 80: e até 1992, a população prisional do Zimbabwe teve um crescimento muito acentuado. Em 1992 atingira a marca dos 22 mil presos o que, para uma população de 14 milhões de habitantes, significava 157 presos por cem mil habitantes, taxa superior à média mundial. E, o que é pior, a maior parte dos presos havia cometido delitos de pequena gravidade e sem violência. As condições gerais de cumprimento das penas deterioram-se muito e as condições sanitárias das unidades prisionais entraram em colapso.

Gastava-se cada vez mais dinheiro, os funcionários estavam insatisfeitos com as condições de trabalho, nada funcionava bem.

Em 1992 criou-se uma comissão no Ministério da Justiça com o objetivo de propor reforma legislativa que permitisse a redução do uso do encarceramento, sem deixar de punir os infratores e, para tanto, optou-se pela prestação de serviços à comunidade como alternativa à pena de prisão. A Comissão Nacional estabeleceu comissões locais para organizar o esquema nas comunidades. Todas as comissões passaram a ser presididas por um juiz e compostas por respeitados membros da comunidade, organizações não-governamentais e representantes da polícia e sistema penitenciário.

De 1992 a 1997 o Zimbabwe reduziu sua população prisional de 22 mil para 18 mil presos, tendo 15 mil infratores, no mesmo período, realizado tarefas não-remuneradas em prol da comunidade, totalizando mais de um milhão de horas trabalhadas. Em média, houve uma economia anual de cinco milhões de dólares, se computado o que se deixou de gastar mantendo na prisão quem não .precisava lá estar, e podia ser punido de outra forma, e o que se deixou de pagar a realização das tarefas que foram executadas pelos prestadores de serviços.

Essas pessoas trabalharam em hospitais, escolas, orfanatos, asilos, ou desenvolveram tarefas visando à proteção do meio ambiente. E, além de tudo isso, o nível de reincidência dos prestadores de serviço foi significativamente mais baixo do que o apresentado por aqueles que cumpriram penas de prisão.

O que está por trás dos excelentes resultados da prestação de serviços à comunidade no Zimbabwe é o absoluto comprometimento dos juízes com o programa, ao atuarem, de fato, na liderança de todo o processo. São juízes que organizam encontros com a população de diferentes comunidades para discutir as vantagens deste tipo de punição, sempre que o infrator não constituir risco de segurança para o grupo social. O envolvimento das comunidades tem sido notável e a fiscalização do trabalho realizado pelos prestadores de serviços é de responsabilidade das instituições que se beneficiam do trabalho gratuito executado.

A situação brasileira, hoje, assemelha-se muito à do Zimbabwe de 1992. Nossa população prisional cresce assustadoramente a cada dia, sem que isso tenha provocado qualquer diminuição nas taxas de criminalidade. De 130 mil presos em 1994, passamos para 150 mil em 1995 e, certamente, este número em 1997 já é muito mais elevado, embora não se tenham ainda dados conclusivos. Nossas prisões são depósitos de gente. Gente que cumpre pena ou aguarda julgamento em condições absolutamente desumanas e degradantes. Gente que vai sair da cadeia muito pior. Gastamos cerca de 700 milhões de reais ao ano para manter nossos presos e, pelo menos, um ter;co deles cometeu delitos de pequena gravidade e sem violência.

A legislação brasileira é muito tímida no que se refere à possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por outro tipo de sanção e, mesmo assim, muito pouco utilizada. De todos condenados em 1995, 98% receberam penas de prisão e apenas 2% outro tipo de pena, como, por exemplo, a prestação de serviços à comunidade. Tramita no Congresso Nacional, já aprovado pela Câmara dos Deputados e esperando decisão do Senado, projeto de lei que aumenta as possibilidades de utilização da prestação de serviços.

No entanto, de nada vai adiantar uma legislação mais adequada, sem juízes comprometidos com a mudança da Justiça criminal neste país, e sem a participação efetiva da comunidade nesse processo.

Está na hora de olhar para o outro lado Atlântico e admitir, como fez o Zimbabwe, nossa limitação de recursos (nunca é demais lembrar que, no Rio de Janeiro, o custo mensal de um preso é de R$ 546 e, o de um aluno no Primeiro Grau, R$ 45) e a necessidade urgente de rever um sistema de penas absolutamente anacrônico. A pena de prisão é cara, ineficaz e reproduz a violência, devendo ser usada com muita parcimônia.

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