Entre os dias 7 e 9 de dezembro de 2000, mais de 600 pessoas se reuniram na cidade italiana de Nápoles, para debater a segurança pública nas cidades. O evento foi organizado pelo Fórum Europeu de Segurança, no seu décimo ano de existência, ao longo dos quais tem havido um envolvimento crescente de organizações governamentais e não-governamentais na busca por melhores e mais seguras condições de vida nas cidades européias. Cerca de doze especialistas latinoamericanos foram convidados para o encontro e minha contribuição se daria no grupo de trabalho destinado a discutir formas de participação da sociedade nas questões da segurança pública.
Houve propostas criativas e relatos de experiências inovadoras. Importante, também, foi a discussão sobre as opções preferenciais de combate à criminalidade, se as iniciativas dependessem da sociedade. Alguns especialistas diziam: o que o povo quer é que os governos sejam realmente duros com o crime ou o que o povo quer é cadeia para todos os criminosos. Neste momento, reiterei o argumento no qual tenho sempre insistido: é um grande equívoco pensar que a população não diferencia os vários tipos de crimes e não percebe que a punição pode ser, também, diferenciada. Enfatizei, ainda, a necessidade de campanhas de esclarecimento do público quando isso não se verifica. Para minha surpresa, logo um número considerável de participantes endossava minha análise e começava a trazer exemplos.
Relato importante veio do Canadá, nas palavras de uma especialista no trabalho com jovens infratores, indicando que, após uma campanha de esclarecimento pela televisão sobre os efeitos perniciosos do encarceramento de jovens, a população de uma determinada área mudou radicalmente de postura e passou a apoiar estratégias alternativas de punição.
Apresentei, para ilustrar o caso brasileiro, os resultados de pesquisa por mim coordenada e financiada pela Fundação Ford que demonstravam o equívoco de se supor que o povo apenas quer dureza com o crime e não é capaz de análises mais elaboradas.
O objetivo da pesquisa era, de um lado, conhecer a opinião de habitantes do Rio de Janeiro sobre a imposição da pena de prisão e de penas alternativas e, de outro, avaliar as mudanças ocorridas em sua percepção após serem informados quanto às vantagens e desvantagens de ambas. Trabalhava-se com a hipótese de que a população de uma grande cidade, bastante afetada pelo crime, tenderia a manifestar uma opinião majoritariamente favorável à pena de prisão como castigo para criminosos. Igualmente, acreditava-se que após um trabalho informativo, tais opiniões se modificariam bastante.
Uma amostra representativa da população da região metropolitana do Rio de Janeiro foi estabelecida através de dados censitários do IBGE e, ao final da pesquisa, havíamos consultado 319 pessoas de diversas áreas geográficas, diferentes condições sócio-econômicas e graus de escolaridade distintos.
Aos participantes da pesquisa, reunidos em grupos de aproximadamente 30 pessoas, propunha-se uma série de atividades. Inicialmente, deveriam preencher um questionário (pré-teste) e decidir que castigo aplicar a cada um dos 21 infratores cujos crimes encontravam-se ali descritos. As opções de punição eram três: pena de prisão, pena alternativa e não estou seguro. Os crimes iam de furtos a roubos; de estupros a estelionatos; de atropelamentos a extorsões cometidas por policiais. Também se indicava se os criminosos eram primários ou reincidentes. Numa folha à parte, distribuída junto com o pré-teste, relacionavam-se as penas alternativas: prestação de serviços à comunidade, multa, indenização à vítima e perda de direitos. Não se informava nada além disso.
Preenchido o questionário, os participantes assistiam à exibição de um vídeo com cenas de prisões; informações gerais sobre o sistema penitenciário brasileiro; homens e mulheres prestando serviços gratuitos à comunidade, como pena alternativa, em creches comunitárias, hospitais públicos e instituições para portadores de deficiências; e, finalmente, uma avaliação sobre as vantagens e desvantagens da pena de prisão e da prestação de serviços à comunidade, esta última considerada por numerosos especialistas como a forma de punição mais eficaz e reintegradora.
Seguiam-se 40 minutos de discussão em grupo, coordenada por um moderador profissional, após a qual os participantes respondiam a um segundo questionário, o pós-teste, que continha rigorosamente os mesmos 21 crimes do pré-teste, para os quais deviam, outra vez, ser escolhidas punições. O objetivo desta segunda consulta era verificar se haviam ocorrido mudanças de avaliação depois do vídeo e da discussão em grupo.
Para minha surpresa, os resultados invalidaram as hipóteses iniciais da pesquisa. A adesão às penas alternativas foi muito grande, desde o início, deixando pouco espaço para crescimento significativo entre os dois testes. No pré-teste, mais de 50% dos participantes já atribuíam penas alternativas a nove dos 21 crimes listados – sendo que, para alguns desses crimes, mais de 70% das respostas admitiam punições alternativas ao encarceramento. No pós-teste, cresceu a adesão às penas alternativas em 19 dos 21 crimes. Resumidamente, os resultados indicaram que, se a distribuição de castigos dependesse da população representada na amostra,
1. os crimes violentos seriam mais penalizados com a prisão do que os crimes não-violentos;
2. haveria maior complacência em relação aos crimes cometidos por pessoas de baixa renda;
3. haveria grande rigor no julgamento de crimes cometidos por indivíduos bem situados na estrutura social e crimes cometidos por policiais;
4. os crimes cometidos por infratores primários receberiam maior quantidade de penas alternativas do que os cometidos por reincidentes.
Logo, é um equívoco supor que o povo simplesmente quer todos os criminosos na cadeia. Quando consultado, o povo consegue ser muito mais sensato do que a maior parte dos nossos políticos e legisladores. Confrontados com opções, os participantes da pesquisa procuravam punir de acordo com a gravidade dos crimes e, nas discussões em grupo, demonstravam clara preocupação com a impunidade – esta sim deveria ser evitada, sempre.
No momento em que o Ministério da Justiça adota a iniciativa meritória de apoiar os estados para estimular o uso das alternativas ao encarceramento, nos casos em que a lei faculta ao juiz tal decisão (basicamente para casos sem gravidade e sem violência), é preciso que políticos, legisladores e juízes, saibam que o povo com freqüência revela surpreendente sabedoria. É preciso ser duro com o crime sim, evitando a impunidade, mas já basta de encher as cadeias com quem não precisa estar lá.